Ascensão do Inimigo

A Guerra da Lança tinha chegado ao seu fim, grandes cavaleiros se sacrificaram para manter a paz, mas o exército maligno não tinha sido derrotado totalmente. Em sua poderosa fortaleza a Dama Azul ainda planejava um último ataque de sua Armada Dracônica aos Reinos de Solamnia. No entanto, um mal muito mais antigo foi despertado sem o conhecimento de nenhum dos lados. Um inimigo incrivelmente poderoso que usa sutilmente sua influência sombria para alcançar seus objetivos. Cabe a um grupo de bravos heróis confrontar esse perigo avassalador que a todos domina. O Sussurro das Trevas é um épico de fantasia dividido em três partes que narrará uma saga no mundo de Dragonlance.

Poema dos Seis Heróis

“A palavra será a redenção dos pecadores
Apenas o mais misericordioso a portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

O escudo será a proteção dos desamparados
Apenas o mais honrado o portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

A espada será a justiça dos oprimidos
Apenas o mais temerário a portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

O cajado será a lei dos desesperados
Apenas o mais prudente o portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

A flecha será o equilíbrio dos soberbos
Apenas o mais sábio a portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

O machado será a vingança dos esquecidos
Apenas o mais audacioso o portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas”

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Capítulo V - Os Leões de Bronze

Sir Hector Launwaine caiu de joelhos no chão. Sua mente estava atormentada com o que Handar lhe mostrou em Vingaard. Ele viu o que nenhum outro homem jamais viu em toda a história de Krynn, mas o Forte estava longe agora, junto com a Ventania e seu mestre.
O Cavaleiro da Coroa tentou contemporizar o porquê do arquimago ter lhe mostrado aquilo, mas nada o consolava e agora imaginou se não tinha finalmente perdido toda a sua sanidade.
Todos os grandes Cavaleiros de Solamnia passaram por provações. Vinnas Solamnus chorou por seus oponentes mortos; Huma Destruidor de Dragões quase desistiu de sua missão por amor; Sturm Montante Luzente foi aceito na ordem em meio a dúvidas sobre seu caráter.
Entretanto, os três viram o Cervo Branco, os três viram o arauto dos Deuses do Bem. Souberam naquele momento que estavam sendo convocados pelo sagrado Triunvirato. Estaria ele, como os lendários heróis, sendo guiado também para uma missão divina?
Não! Não eram sinais dos Deuses, não podiam ser. Estava tendo delírios com toda certeza. Sir Hector não era religioso como Vinnas, não era honrado como Huma, não era um herói como Sturm. Era apenas um homem comum como qualquer outro, não haveria canções sobre ele.
Tudo aquilo era demais para o nobre solâmnico e quando achou que finalmente iria desmaiar, o cavaleiro escutou sons de batalha ao longe e viu a fumaça de caravanas sendo queimadas. Era um ataque de goblins.
- Posso não ser uma lenda, – disse a si mesmo, juntando forças. – mas ainda há bravura em mim! Eu ainda me lembro dos meus votos.
O homem se levantou e todos os seus temores o abandonaram. Havia apenas a vida dos inocentes em sua mente. Como um cavaleiro ele deveria proteger a vida acima de tudo, como estava escrito na Medida.
Sem pensar duas vezes Launwaine entrou no conflito...



Orvalho da Aurora estava quase perdendo a consciência quando caiu. A esperança a tinha abandonado e se encolheu tremendo para receber o golpe de misericórdia que nunca veio. Fechou os olhos devido à tontura e quando os abriu, viu que estava nos braços de um homem de aço.
Era um Cavaleiro da Coroa, que estava abraçando-a gentilmente com o mesmo braço que segurava um escudo, de forma que podia defendê-la também. Portava uma espada longa em sua outra mão que estava apontada em direção do bugbear e, este, estava com um corte no braço devido ao golpe do homem que acabara de salvá-la.
Furioso, Thurk pegou sua maça que estava caída no chão e avançou com toda a força que tinha sobre os dois. O cavaleiro teve o reflexo, devido a anos de treinamento, de se proteger com o escudo, mas como protegia a elfa, ele tentou aparar o golpe com o seu braço livre. Conseguiu, mas seu membro foi esmigalhado pela força monstruosa da criatura, mesmo que protegido pela armadura completa.
O honrado solâmnico caiu de dor, mas protegeu a kagonesti a colocando embaixo de seu próprio corpo. Lembrou-se novamente da Medida. Lembrou que deveria proteger a vida acima de tudo, fosse a sua, a de seus companheiros ou a de inocentes.
- Vou mantê-lo ocupado! – disse. – Terá tempo para fugir e se proteger!
- Qual é o seu nome?
- Hector!
- Não esquecerei seu sacrifício, nobre cavaleiro!
O homem sorriu. A Medida mais uma vez veio à sua mente. Um Cavaleiro de Solamnia deverá sacrificar sua vida por um bom ideal ou por pessoas de bem, mas sua vida é muito importante para ser perdida sem razão.
Seria honrado morrer para protegê-la, mas Launwaine não entregaria sua vida sem luta. Empertigou o corpo e segurou firme seu escudo. Ele seria sua proteção e sua única arma, pois não podia usar mais seu braço direito. Não havia medo nele e o goblinóide vacilou por um momento, mas ainda sim atacou...



Thorvalen tinha ouvido gritos de Dális, que pedia socorro pela elfa selvagem. Então retirou uma adaga de lâmina larga escondida em sua bota e fincou no pescoço do worg, que uivou de dor, mas silenciou quando o neidar abriu sua garganta.
Levantou e arremessou o punhal no goblin que montava o animal e, recuperando Lâmina Glacial, se pôs a correr atrás da kagonesti, abrindo um caminho pelos duendes a machadadas! Um a um, o proscrito derrubava com apenas um golpe cada monstrinho que impedia seu avanço. Satisfeito com o impacto que as mortes dos porta-estandartes tinha causado nos inimigos, iniciou uma antiga canção de batalha dos anões da colina:

“Um goblin agora vai, outro já vai já!
Assim sorrindo, me ponho a cantar!
Um goblin agora vai, outro já vai já!
Assim sorrindo, me ponho a talhar!
Um goblin agora vai, outro já vai já!
Assim sorrindo, me ponho a matar!”

O mercenário e a cantoria pararam apenas quando ele viu o cavaleiro lutando armado com apenas seu escudo contra o imenso bugbear, era uma situação desesperadora. Não pensou duas vezes e saltou contra o monstr, cravando sua arma nas costas da criatura. Thurk tentou reagir, mas o guerreiro se segurou e acertou mais um golpe, abrindo um buraco entre o pescoço e o ombro direito, abatendo seu oponente.
Então, vendo que sua protegida não mais corria riscos, Sir Hector desabou, atordoado com o próprio ferimento.
Orvalho da Aurora viu o sofrimento do homem e se prostrou a rezar pedindo que Chislev, a Deusa da Natureza, intercedesse por seu salvador. Uma luz verde clara emanou das mãos da jovem restaurando os ossos quebrados do Cavaleiro de Solamnia, que teve sua força renovada.
Os dois guerreiros olharam admirados para ela, que se encolheu envergonhada. Sabiam agora que se tratava de uma sacerdotisa da natureza.
Assim o nobre solâmnico se curvou, agradecendo pela ajuda, e disse:
- Está bem, minha dama?
- Estou sim, obrigada! Quem é o senhor?
- Sou Sir Hector Launwaine, primeiro filho de três; Cavaleiro da Ordem da Coroa e vassalo de meu pai Sir Baldwin Launwaine, o Barão de Relgoth. Sou muito grato pela ajuda dos dois!
- Nós somos gratos! Meu nome é Orvalho da Aurora e sou uma druidisa do círculo da Floresta Enegrecida. Serva do Senhor da Floresta.
- E eu sou Thorvalen, vamos logo que isso não é um encontro social! Agora onde está aquela matraca falante?
O anão da colina procurou pelo gnomo e viu que os poucos goblins que tinham sobrevivido estavam fugindo, mas muitos dos mercadores morreram. Imaginou que teria problema com seu pagamento.
Foi quando todos viram uma das carroças ser arremessada. Quando todos viram o enorme ogro atacando. Aquelas criaturinhas covardes não estavam fugindo, apenas estavam se escondendo para que esse monstro fizesse o trabalho para eles. Aquilo iria destruir toda a caravana.
Os três se prontificaram corajosamente a enfrentar o gigante. O anão com seu machado em mãos, a elfa colocando uma flecha em seu arco e o cavaleiro erguendo seu escudo.
- Terá que usar sua espada! – disse o neidar. – Aquilo não é um duende!
- O Bugbear acabou quebrando minha espada! – respondeu o homem. – Aquele oponente é perigoso demais para nós. Temos que agir em equipe!
- Fale por você! Minha raça está acostumada e enfrentar essa besta, mas concordo que temos que agir juntos. Ponha-se na frente dele e deixe o resto comigo.
- Também quero ajudar! – reclamou a kagonesti. – Vou ficar de longe e atirar.
- Bah, elfos!
Sir Hector sorriu. Conhecia as diferenças entre o povo das colinas e o povo das matas e sua inimizade natural. No entanto, se sentiu seguro com Thorvalen e Orvalho da Aurora ao seu lado. Por algum motivo achou que eram bons guerreiros, mas não gostava muito de enfrentar um oponente recebendo ajuda. Conformou-se olhando para o Ogro e avaliando que era realmente perigoso demais.
Era um ser monstruoso com quase três metros de altura, de gordura e músculos. Tinha a pele de um amarelado encardido cheio de cicatrizes, verrugas e pêlos escuros. Sua cabeça era grande e débil, com dentes inferiores grandes o suficiente para aparecerem mesmo com a boca fechada. Vestia uma roupa de peles que protegia seu corpo, embora seu próprio couro fosse quase tão duro como o de um crocodilo. Usava uma clava rústica e um escudo feito com os ossos do crânio de algum animal muito grande.
- Afinal essa coisa burra não vai dar muito trabalho, não é mesmo? – disse o mercenário. – Não dá para esperar muito disso!
- Não bom tirar sarro de Baloth! – disse o ogro. – Baloth fica bravo e esmaga homenzinho.
- Baloth vai é morrer pela Lâmina Glacial!
Dito isso, o anão correu por entre as pernas do gigante e acertou uma machadada na coxa do monstro que urrou e golpeou o guerreiro em um movimento circular.
Launwaine se adiantou, empurrando o companheiro, e ficou com escudo aposto recebendo o ataque. A pancada foi mais forte do que ele previu e o cavaleiro foi arremessado longe.
A druidisa atirou uma flecha certeira no ombro da criatura, que a ignorou completamente. Ela disparou mais uma seta, mas esta parou nas espessas peles que o protegiam.
O neidar se recuperou e acertou-o mais uma vez com sua arma, atraindo a ira da besta, que se virou, e com as duas mãos, desceu a clava com toda a força sobre Thorvalen.
O Cavaleiro de Solamnia lançou seu escudo com força suficiente para desviar o braço do ogro e salvar novamente seu parceiro, que aproveitou para correr e ficar nas costas da criatura.
A kagonesti entendeu o plano e atirou uma Flecha Cantante. Era uma seta que os elfos usavam para sinalizar em meio a um combate. Tinha na ponta um pequeno orifício por onde passava o ar quando era disparada, produzindo um som agudo. Ela mirou perto da cabeça de Baloth, que ficou atordoado pelo barulho.
Sir Hector, que também entendeu o plano, procurou por alguma arma no chão e achou somente as cruéis espadas goblin. Pegou uma e correu para, novamente, se bater contra o monstro.
O anão da colina saltou e cravou a Lâmina Glacial nas costas do monstro, que ficou furioso e, largando a clava e o escudo, tentou alcançar seu oponente com as mãos. O mercenário se esquivou e começou a escalar o gigante a machadadas! Golpeava e subia até atingir a altura da cabeça.
Durante os ataques do guerreiro proscrito, a elfa disparava inexoravelmente suas flechas atingindo o peito da besta que estava começando a ficar desesperada.
O nobre solâmnico finalmente chegou em uma poderosa carga:
- Praethor di Sularus! – proferia um velho brado de guerra dos cavaleiros e desferiu um golpe com a espada decepando a perna da criatura, que caiu ruidosamente no chão.
O ogro, que ainda estava vivo, tentou se levantar, mas foi impedido pelos golpes de machado na sua cabeça que Thorvalen desferia.
As flechas continuavam a ser atiradas sem piedade e o honrado membro da Ordem da Coroa não se sentiu à vontade para continuar. Sabia que logo o embate terminaria bem para seus companheiros e ele se viu mais útil indo ajudar os sobreviventes daquele vil ataque.



Demorou todo o resto da tarde para que a caravana se colocasse em movimento novamente. Muitos haviam morrido no ataque e a viagem ficou com um ar lúgubre com o silêncio tomando conta de todos. Esse sentimento mudou rapidamente quando puderam ver as flores argênteas, embora rosadas pela luz avermelhada de Lunitari, das árvores Bordo-do-Norte no Bosque da Caça.
O Bosque era um local onde os nobres de Relgoth se divertiam praticando a caça. Era um costume antigo e quase não era praticado naqueles dias. A floresta abrigava em seu interior uma bifurcação do rio Vingaard que seguia para o norte, mas seu afluente vinha dos rios duplos do campo da cidade.
O Sol já estava em declínio quando chegaram e pelos conselhos do Cavaleiro da Coroa a caravana parou para descansar e continuar no dia seguinte.
- Pelo caminho que estamos tomando – disse o cavaleiro. – chegaremos na cidadela amanhã à tarde!
- Mais rápido que imaginei – comentou Asmar, o líder da caravana. – Teremos mais tempo para nos recuperarmos.
- Meu pai irá ajudá-lo a compensar a perda, com certeza!
O mercador tinha ficado menos abatido, pois sabia da honra dos Cavaleiros de Solamnia e realmente esperava que o Barão, pai de Sir Hector e o governante da cidadela, ajudasse a ele pela palavra do filho. Sim, talvez a situação não tivesse ficado tão desesperadora assim.
Thorvalen estava agora sempre junto com Orvalho da Aurora para ter certeza de sua recuperação. O anão proscrito tinha ficado feliz por Dális ter encontrado no nobre solâmnico outro alvo para sua tagarelice, mas não adiantou muito já que a druidisa estava sempre perto do humano.
Inicialmente o neidar tinha imaginado que a kagonesti, fútil como todos os elfos, tinha ficado apaixonada pelo cavaleiro, mas logo percebeu que seu interesse não era por algo assim tão simples.
Queria perguntar a ela sobre isso, mas como todos de sua raça ele era taciturno e todos sabiam que os elfos selvagens também eram reservados, então ambos ficavam juntos silenciosamente em volta da fogueira...
- Talvez eu tenha algum ancestral da cavalaria, quem sabe? – o gnomo falou cofiando seu bigode. – Moramos na mesma ilha em Sancrist e os homens de lá têm relações duradouras com meu povo!
- Talvez, – respondeu Sir Hector, desistindo de escrever em seu diário. – mas duvido que tenha chegado a tanto!
- Receio que sim, meu nobre! As gnomas são atraentes. Não são magrinhas como as suas fêmeas, apenas perdem para as anãs. Aquelas sim têm o que apertar!
- Balela! – resmungou Thorvalen sem perceber que a elfa ficou ruborizada com aquilo. – Duvido que já tenha deitado os olhos em uma anã na sua vida, sua matraca mentirosa!
- Ora, não seja absurdo! Claro que já vi, pude até espiar suas semelhanças com os machos!
- Como assim? – perguntou a druidisa. – Quais semelhanças?
- Bom, – o pequenino se aproximou dela e sussurrou no seu ouvido. – é que elas também têm barba!
- Barba? – a kagonesti exclamou alto e todos do acampamento puderam ouvir caindo na gargalhada. – Ops!
- Pelas barbas de Reorx! – bradou o mercenário. – Vai retirar isso ou eu vou esmagar sua cabecinha com minhas próprias mãos!
O intrépido Dális se pôs a correr e o anão da colina foi atrás; a visão dos dois pequenos correndo foi, de alguma forma, mais hilária para os mercadores, que rachavam de rir. Alguns chegaram a cair no chão de tanto gargalhar e nem parecia que no dia anterior estavam se defendendo de goblins, worgs e ogros.
Sem que percebessem, o Cavaleiro de Solamnia se levantou e, com um olhar sombrio, afastou-se da roda, entrando no bosque. Orvalho da Aurora o seguiu e parou ao seu lado preocupada com ele, mas o respeitou, não perguntando o que tinha, assim disse puxando assunto:
- O que estava fazendo na estrada? – o homem fez uma expressão tão triste que ela quase se arrependeu de ter feito a pergunta. Respirou e continuou: – Digo, como foi parar aqui?
- Estava voltando de uma longa e cansativa viagem! – respondeu austero o solâmnico. – Estava vindo do norte.
- Mas não cansado o suficiente para deixar de me salvar! – a elfa tentou algo mais afável. – Norte? O que o levou para o sul de sua cidade?
A garota selvagem tinha razão. O caminho do norte para Relgoth não o faria chegar tão ao sul e o membro da Ordem da Coroa se encolheu melancólico com a pergunta. Pensou em responder, mas imaginou que até uma druidisa o acharia louco, então desistiu.
- Orvalho da Aurora? – perguntou o cavaleiro mudando de assunto. – Seu nome em élfico é Aulhanne?
- Aulheanne!
- Minha mãe tinha o nome de Elaine, mas sua família a chamava de Anne.
- Que nome lindo!
- Sim, ela também me chamava por outro nome. Heitor, como é meu nome na terra dela!
- Qual era a terra dela?
Ambos se assustaram com um repentino barulho e se voltaram para observar a mata. Viram um majestoso cervo andando entre os arbustos que parou para olhá-los com curiosidade. Cervos eram comuns em Solamnia e aquele era um nobre Cervo Real, que possuía a maior galhada entre sua espécie. O animal os julgou inofensivos e inclinou tranqüilamente a cabeça para comer.
- Ela se parecia um pouco com você – Sir Hector sorriu. – Ela era bem pequena!
- Ah! Claro!
- Sua família era de Ergoth, então ela era morena, mas tinha olhos verdes como as folhas dentadas dessas árvores.
- É mesmo filho do Barão?
- Sou sim, de uma linhagem que comanda a cidadela há mais de dois milênios!
- Eu não sei o porquê, - a elfa disse vacilante. – mas eu confio em você!
- Pode confiar! Qual é o problema?
- Eu vou dizer.
A kagonesti contou tudo que sabia. Contou que o ataque à caravana não fora apenas um ataque de saqueadores, mas para encontrá-la; que ela e seus companheiros tinham a missão de proteger o Grimório de Magius e que fugia de Olmeiro, uma vila que agora estava sitiada por um exército de diversas tribos goblins unificadas.
O Cavaleiro de Solamnia viu-a estremecer com a própria história, imaginou que a jovem devia estar se condenando pelo que ocorreu com os mercadores. Então, Sir Hector acariciou o rosto dela que, envergonhada, apenas por não estar acostumada com aquele tipo de contato, abaixou a cabeça. Ele levantou seu rosto pelo seu delicado queixo e pôde ver seus olhos amendoados e com feixes rubros provocados pela Lua Vermelha.
- Tudo ficará bem! – disse e a abraçou.



Chegaram a Relgoth no fim da tarde do dia seguinte e todos se admiraram com o extenso campo que rodeava a cidadela. Eram banhados pela bifurcação do rio que formava um fosso natural com a cordilheira de Vingaard atrás.
Passaram, vindos do sul, por uma ponte com vigas de treliça feita de bronze e dava para a Aléia d’Ouro. Era uma linda alameda de Bordo-do-Norte que fora trazido do bosque e, como explicou Sir Hector, a ponte norte dava para a Aléia Campestre, que tinha Senhora-dos-Brados, trazido por Sir Dinadan Launwaine da Floresta Enegrecida antes da Terceira Guerra dos Dragões.
Os olhos dos viajantes ficaram maravilhados pelos deslumbrantes Campos Dourados que formavam toda a área entre rios, fora à própria cidadela. Plantava-se, sobretudo, aveia, que os solâmnicos há muito tempo descobriram ser importante na alimentação de seus nobres cavalos.
Chegaram finalmente às muralhas de Relgoth. Pareciam dois grandes círculos que se ligavam de forma que faziam uma intersecção onde ficava o Palácio de Vivianne; a atual sede do governo. Eram poderosas barreiras com passarelas em sua ameia por onde arqueiros vigiavam através dos merlões enfeitados com flâmulas auriverdes que eram símbolo dessa cidadela.
Podiam ver os intransponíveis portões de bronze entalhados da forma que faziam os lendários artesões do Império de Ergoth, lembrando os companheiros que a cidade era mais antiga que a cavalaria. Estavam abertos e eram guardados apenas por dois leões estatuários, um de cada lado.
Até mesmo Thorvalen parou pasmo com a riqueza de detalhes dos Leões de Bronze. Subiu na base para alisar a estátua e pôde sentir a musculatura felina esculpida que lhe deu a aterradora impressão de que estariam vivos! Ele gargalhou alto e disse:
- Essa obra só pode ter sido feita por mãos anãs!
- E foi! – elucidou o cavaleiro apontando para uma alta construção nas montanhas. – Feita no auge das minas de bronze antes mesmo dessa terra se chamar Solamnia.
- Por que leões? – perguntou Orvalho da Aurora.
- Eram os amimais que viviam aqui bem antes dos homens chegarem e expulsá-los. Viraram o símbolo da cidade e, séculos mais tarde o escudo da minha família, quando o próprio Vinnas Solamnus tornou meu ancestral Heward um cavaleiro.
- Bom, – disse o neidar. – vamos para uma hospedaria descansar. Acho que não nos veremos mais, então tenha um bom dia meu senhor!
- Tenha um bom dia também, mestre anão! – respondeu o solâmnico, concluindo que o mercenário não receberia o pagamento da caravana. – Se for de seu desejo procure uma taverna chamada Dragão de Bronze e diga que eu os mandei, Leodegan não irá cobrar a estadia de vocês!
- Não será preciso!
- Ora, permita-me agradecer a ajuda de tão nobres companheiros!
Um pouco contrariado, o guerreiro proscrito resolveu concordar. O nobre viu os três partirem e sentiu que não seria a última vez que os veria, ou pelo menos, no fundo de seu coração, ele assim esperava.
Estava feliz por voltar à sua terra de origem, mas receava que partiria logo. As informações que a elfa selvagem lhe tinha revelado eram perturbadoras e imaginava que seu pai o mandaria para Olmeiro a fim de saber o que estava acontecendo para as tribos goblins se reunirem, para que caçassem tão implacavelmente aquela caravana.
Sir Hector se dirigiu ao Palácio com a mente cheia dessas dúvidas e preocupações. Quase não percebeu os guardas de indumentária auriverde que o cumprimentavam, por ser um cavaleiro, quando passava. Quase não percebeu o quanto sua cidade mudara e que ninguém o reconhecia.
Entretanto isso mudou quando chegou ao Jardim da Despedida que compunha o pátio do enorme Palácio. Ali estavam outros Cavaleiros de Solamnia que rapidamente o reconheceram e saudaram felizes a sua volta.
Passou pelas lindas Jasmins-da-Noite que eram de cor cândida durante o dia, mas quando se abriam à noite, mostravam suas pétalas púrpuras e exalavam um cheiro forte, que o fez lembrar de sua infância, quando ele e seu irmão ainda podiam brincar vigiados pela sua mãe.
Entrou no Palácio de Vivianne e rapidamente foi levado ao Salão dos Escudos, onde os nobres se reuniam para sua Assembléia de Cavalaria. Seus membros não eram apenas da nobreza, mas faziam parte do chamado Círculo Interno, ou apenas Concílio, formado apenas por cavaleiros. Seria apenas ali onde um lorde estaria, sentado em um trono de madeira, junto aos seus vassalos.
- Bons olhos o vejam! – disse Sir Dervel, o primeiro a vê-lo. – Que seu retorno seja longo!
- Tragam meu filho a mim! – pronunciou o Barão. – Quero ver que homem se tornou!
O jovem Launwaine se ajoelhou, como escrito na Medida, em frente ao pai e entregou seu diário a Sir Raymond, o mais graduado Cavaleiro da Coroa da cidadela. Ele colocou, para espanto de todos, sua bainha vazia à sua frente, entre ele e seu suserano, e se desculpou:
- Perdão Meu Soberano! – disse. – Minha espada foi quebrada!
- Terá muito tempo para explicar isso!
Sir Baldwin Launwaine, o Barão de Relgoth, se levantou com certa dificuldade. Era um homem alto, de olhos azuis e cabelos loiros, mas já tinha mechas brancas devido à idade. Tinha uma longa barba, o que era raro na cavalaria, mas seu bigode era bem cuidado. Estava com a armadura dos Cavaleiros da Rosa bem polida, a qual lhe dava um aspecto de grande guerreiro.
Quebrando todas as formas de decoro e etiqueta, o Barão abraçou o jovem com o carinho que apenas um pai pode dar. Ele olhou admirado para seu filho que já estava com olhos marejados pela saudade e segurando seu rosto o saudou:
- Saudações, cavaleiro!
- Estou muito... – começou Sir Hector, mas foi interrompido.
- Quero que todos vejam que meu filho voltou e finalmente é um Cavaleiro de Solamnia!
Todos aplaudiram e Sir Baldwin continuou:
- Homenageio meu filho como burgo-mestre de minha cidadela em minha ausência!
- Como? – perguntou uma voz atrás dos cavaleiros que ainda não tinha se pronunciado. – Esse não é meu cargo?
- Sim, mas até seu irmão voltar!
- Mas o que sabe meu irmão dos assuntos de Relgoth? – a voz se aproximou e todos puderam vê-lo. – Eu ocupei o cargo durante anos, que direito...
- O direito que tenho como Barão!
- Mas, ele nem trouxe suas armas, como está escrito na Medida!
- Afaste-se! – ordenou o velho Launwaine. – Você não é um cavaleiro ainda, não pode entrar no Salão dos Escudos!
- Claro que posso! Sou seu filho e se não posso por direito de mérito, eu posso por direito de sangue!
O jovem socou uma mesa que estava próxima assustando a todos que estavam no Salão. Os cavaleiros já tinham se adiantado para levá-lo dali, mas pararam quando ele voltou a falar apontando para Sir Hector:
- Que assim seja, meu irmão! Eu digo que não é capaz de administrar a cidadela e por meu direito eu dou minha palavra!
Todos entenderam o que o irmão caçula acabara de fazer. Ele desafiara seu irmão mais velho. Era um Duelo da Honra. Quando um nobre solâmnico coloca sua palavra para afirmar seu ponto de vista ele se torna a verdade. Ninguém tem o direito de contestá-la, a não ser que um outro nobre o faça. Se um nobre levanta dúvidas sobre a palavra de outro, então os dois devem duelar e a verdade estará com quem vencer por combate, como está escrito na Medida.
- Que assim seja, meu irmão! – respondeu rápido Sir Hector. – Eu não levanto dúvidas sobre sua palavra!
- Mas eu sim! – pronunciou o Barão, colocando a mão em seu filho mais velho. – Eu aceito o desafio e convoco meu vassalo para resolver o embate!
- Não, pai! – protestaram os dois filhos.
- Que assim seja! – voltou a dizer o pai.
Quando o nobre que desafia, ou é desafiado, é um lorde, este pode escolher um de seus vassalos para representá-lo em um duelo, como está escrito na Medida. O desafiado escolhe as armas e se esse for representado por outro, será o lutador que escolherá a arma.
- Então – disse tristemente Sir Hector. – eu escolho espadas de madeira!
A escolha de um duelo de espadas de madeiras determina que um nobre não quer matar o outro. No entanto, lutavam sem armaduras e ambos poderiam sair machucados do combate.
As espadas foram trazidas enquanto os irmãos tiravam suas armaduras. Ambos ficaram apenas de calça e botas e se colocaram no meio do Salão, que foi montado de forma improvisada para o duelo, pois não havia tido um desde antes do Cataclismo.
Ficaram um de frente para o outro ouvindo as poucas regras da disputa enquanto os pajens colocavam um escudo da família Launwaine de cada lado, representando os dois irmãos. Eram escudos verdes com um leão amarelado no centro. Um para cada irmão. Os Leões de Bronze.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Capítulo IV - Orvalho da Aurora

O inverno era particularmente severo nas terras dos cavaleiros. A neve caía constantemente no mês de Profundeiro e a corrente gelada que sopra do Mar de Sirrion traz tempestades glaciais implacáveis.
A impressão que se tinha quando se deparava com as Planícies de Solamnia nessa época do ano é que se estava vendo uma tundra.
As estradas e vias ficavam obstruídas, tornando o percurso laborioso para os audaciosos, senão imprudentes, viajantes que desafiavam aquela paisagem gélida. Assim todo o comércio ficava estagnado e nenhum produto saía de uma cidade para outra. Todos tinham que viver do que fora estocado o ano inteiro.
O inverno em Solamnia era inexorável e qualquer erro podia ser fatal.
Mesmo toda aquela desolação mudava bruscamente no primeiro mês da primavera, o Riaverde. Chamado de “Alvorecer da Primavera” pelos elfos e de “Degelo Montanha” pelos bárbaros, esse era o período mais lindo do ano, todas as flores desabrocham acolhendo hospitaleiramente a estação vindoura.
Logo o comércio era reaberto velozmente, “temos que recuperar o tempo perdido”, como diziam os burgueses. Várias caravanas prontamente voltavam a cruzar as rotas que ligavam os mais importantes centros daquelas terras. O contato entre Palanthas, Solanthus, Lemish, Relgoth, Hargoth, Kalaman, Gaarlus, Thelgaard, Caergoth, Granada e o Porto do Chamado estava revigorado e a sobrevivência dessas cidades garantidas.
Viajavam com as caravanas madeira, ervas, alimento, gemas, minério, para o mercado interno, mas vinham de outros reinos também cereais, cerâmicas e couro curtido de Abanassínia; ferro e aço de Ergoth Setentrional; sal, peixes exóticos e navios das Ilhas do Mar de Sangue; diamantes, especiarias e seda de Khur e alimentos de cabra e lã de Ortiva.
Solamnia prosperava dessa forma, mesmo sendo uma terra de cavaleiros, e por isso atado ao sistema feudal. Os mercadores cresciam de uma forma desenfreada, ficando cada vez mais poderosos. A economia era movida pelo forte comércio das estradas, por isso os solâmnicos mantinham suas rotas livres e bem cuidadas, mas muitos perigos podiam se abater aos viajantes.
Percorrer as estradas no início da primavera também era perigoso, pois muitos goblins, saqueadores e, naqueles dias estranhos, até os bárbaros das planícies atacavam os viajantes buscando debelar os males causados pelo recente inverno. Logo não poderia haver apenas comerciantes e burgueses em uma caravana.
Muitos eram os aventureiros que ganhavam a vida ao se juntavam aos mercadores em suas perigosas viagens. Guardiões, guerreiros e combatentes que, por um bom preço, protegiam os mercadores de ataques de saqueadores tornando o negócio um pouco mais seguro, mas nunca totalmente estável. Sempre haveria imprevistos, sempre haveria a necessidade de mercenários.
Assim essa era uma profissão muito lucrativa, pois um homem de armas era sempre bem-vindo em uma caravana e se tinha alguém que entendia bem disso, se tinha alguém que sabia ganhar moedas sendo um protetor de mercadores, esse era Thorvalen, o proscrito.
Expulso do clã neidar, dos anões das colinas, por algum motivo que se recusava a revelar, o anão tinha conquistado fama como mercenário e nunca tinha falhado em uma missão. Mesmo com seu jeito rabugento e teimoso, os viajantes achavam muito bom ter o seu machado por perto ou, como o ele próprio dizia, “machado por prata!”.
Como todos de sua raça ele era baixo, mas menos do que se esperava. Tinha um metro e meio de altura e era bem mais largo que um humano. Seus braços pareciam toras de madeira e sua pele escura comprovava essa impressão. Vestia uma armadura de couro muito resistente que se escondia debaixo de sua longa barba grisalha. Estava com um grande machado de guerra preso às costas e uma besta pesada feita pelo seu povo na cintura, junto a sua aljava cheia de quadrelos com pontas de aço.
Estava agora em uma caravana, saindo de Kyre, indo em direção a Solanthus, para depois Palanthas. Levavam com eles todo tipo de mercadoria em dez carroções, sob o comando das mãos, cheia de dedos nodosos, de Asmar, um mercador de Thelgaard que enriqueceu pelo próprio trabalho.
Além do guerreiro também viajava, na segunda carruagem, um pequeno e intrépido gnomo que, para desalento do neidar, não parava de matraquear desde que se encontraram, como era o costume de todo o povo daquela diminuta raça. Assim o mercenário era o alvo de todo o seu enfadonho falatório.
- ...então eu disse! – falou o pequenino. – Vai ter que pôr mais uma válvula aí meu caro! Não tem como criar uma máquina que faz gelo apenas com quatro e, já que estamos falando nisso, pode pôr umas três roldanas também! Ora, como quer que abram a porta disso? Com as mãos?
Tudo aquilo era tão irritante para o rabugento Thorvalen se imaginava esmagando a cabeça daquela criaturinha e, olhando para suas enormes mãos, pensou que não seria lá muito difícil.
Os gnomos eram pequenos, mesmo para um anão e aquele, em especial, parecia ser o menor e mais frágil deles. Tinha bem menos de um metro de altura e não pesava muito mais de vinte quilos. Sua pele era rosada e os cabelos loiros e crespos. Sempre cofiando um enorme bigode loiro, que lhe dava a impressão de ser um Cavaleiro de Solamnia em miniatura, apesar do enorme e desproporcional nariz que tinha.
O pequenino continuava a falar, sem se importar com o olhar fulminante que o neidar proscrito dirigia a ele.
- Sabe o que ele me falou? Que alguém da Guilda dos Vulcanólogos não entenderia nada disso, acredita? Aquilo me deixou bravo, meu; não sei como eles não explodiram o Monte Deixapralá ainda! Não! Definitivamente, não dava mais para aturar aquilo, então resolvi sair de lá e estudar os vulcões em Solamnia, claro que na época eu não sabia que não tinha vulcões aqui, mas sem problemas, tudo bem! De qualquer forma eles falavam muito sabe? Não sabiam a hora de ficar calados! Eu não! Eu sei muito bem, aliás, muito bem mesmo; quando não sou desejado, não fico por aí tagarelando como um kender, eu sou Dális, o gnomo!
Os outros viajantes, ao ouvirem isso, se permitiram dar generosas gargalhadas. Todos achavam extremamente divertido o fato de que o pequeno tivesse ficado amigo do anão, justo do anão! Thorvalen era quieto como uma porta e quase não falava com ninguém, sempre solitário, sempre taciturno. Dális era seu oposto, o outro lado da moeda. O pequenino, simplesmente, não parava de falar.
Os mercadores já tinham feito apostas, entre eles, de até quando o Proscrito agüentaria aquilo, imaginando se não seria aquele o dia em que finalmente o gnomo teria sua cabecinha esmagada pelas poderosas mãos do anão da colina, ou ao menos, que seu corpo fosse arremessado para bem longe.
A criaturinha realmente estava inspirada naquele dia.
- Ah, isso me lembrou de uma coisa! – Dális olhou para Thorvalen. – Vai gostar, tem elfos nessa história! – alisou o bigode vasto e continuou. – Um dia estava na Floresta Enegrecida, ou seria Mata Escura? Ih, eu sei lá! Bom, estava no bosque e caminhava tranqüilamente com meus botões quando de repente, não mais que de repente...
Repentino foi o pulo que o neidar deu. Ficou de pé, encima da carroça, em um instante. O gnomo se curvou achando que a paciência do novo amigo tinha terminado, que receberia um tabefe ou coisa pior, mas o golpe não veio. Ele olhou para o companheiro em pé e viu que outra coisa era o causador de sua súbita reação, algo no meio da estrada.
Sem o menor aviso, o anão proscrito saltou da diligência, que ainda estava em movimento, e caiu pesadamente, mas de pé, na estrada. Correu para frente, ultrapassando as carruagens, e se colocou no meio da estrada e à frente, com seu machado em punho, assustando a todos que viram seu inconcebível ato.
- Oh, espere por mim! – disse Dális. – Não quero que se meta em encrenca, meu amigo barbudo!
O pequenino esticou seus braços e foi prontamente atrás do parceiro, mas acabou tropeçando e tombou desajeitado na estrada gerando ainda mais risadas nos mercadores.
Entretanto aquela balbúrdia sequer tinha chamado a atenção do experiente mercenário. Ele avistara algo estranho na estrada e agora, tão perto, podia ver o que era. Isso o deixou mais agitado.
Havia sinais de luta, não precisava ser um guardião para perceber isso. O local estava todo revirado e tinha três corpos caídos na estrada. O anão da colina se aproximou e viu que se tratava de elfos, ou ele julgou ser. Eram guerreiros, pois viu várias das suas armas em volta, junto a várias chamas que estavam, estranhamente, por todo o lado.
O neidar também viu que duas estátuas de draconianos estavam ali, com flechas fincadas em seus pétreos corpos. Sabia que os baaz viravam pedra quando sucumbiam prendendo a arma que o matou, para desespero de seu oponente. No entanto, logo depois os corpos petrificados se reduzem a pó e como isso ainda não ocorrera, ele imaginou que o combate fora há pouco tempo.
A caravana parou e muitos foram ver o que tinha chamado a atenção de Thorvalen. Logo todos ficaram assustados, com medo de que tivesse sido um ataque de saqueadores e assim, eles seriam as próximas vítimas. O medo se alastrou rápido e Asmar, o líder, quase não conteve os ânimos.
O Proscrito chamou o único rastreador que tinham e pediu:
- Grimur! Olhe! Diga-me o que houve, exatamente, aqui!
- Claro! – respondeu o guardião.
O mateiro começou a observar o chão quando, atônito, percebeu o que ninguém tinha visto. Um dos elfos estava vivo ainda! Aproximando-se, viu que era uma elfa, uma kagonesti. Entretanto, o mais importante, é que ela estava viva, mas a morte a estava espiando. Então, logo que Grimur a viu, ele a pegou nos braços e, com toda a delicadeza que a situação permitia, levou para dentro de uma das carroças.
Todos correram para auxiliá-la, menos o anão e o gnomo. Ambos ouviram os murmúrios delirantes que a coitada proferira, e como os dois eram os únicos fluentes no belo idioma dos elfos, eles entenderam o que ela tentava dizer. Ela pedia por um livro que possuía, como se sua vida dependesse disso. Assim, os pequenos e improváveis companheiros se prestaram à busca.
Dális saiu da estrada imaginando se o livro poderia ter caído longe. Já o neidar continuou no caminho e viu que algo queimava em um ponto. Bom na verdade aquilo não estava queimando, havia fogo em sua volta, mas o objeto não queimava e foi isso que chamou sua atenção. Thorvalen pegou seu machado e jogou sobre o fogo, extinguindo-o.
Claro que um machado normal não faria aquilo, mas o experimentado mercenário tinha uma arma mágica. Semelhante às ceifadoras gélidas, feitas na Fronteira Glacial no sul, a lâmina de seu machado era feita de gelo a uma temperatura extrema, que nunca derretia e tinha o corte de uma navalha.
A arma que Thorvalen tinha era ainda mais perigosa, pois fora feita por um anão da colina, do clã dos klar, com a ajuda do Povo do Gelo. Ambas as técnicas unidas criaram a Lâmina Glacial, um machado de guerra que além de nunca derreter, continha e apagava qualquer chama ou foco incandescente.
Assim, o machado mágico eliminou o fogo e revelou o livro que estava em seu interior. O guerreiro pegou o livro com cuidado, mas este não estava sequer quente e o examinou.
Era um livro antigo com capa de couro e de um metal que nem ele, um mestre ferreiro, soube identificar. Também não soube dizer o que estava escrito, pois nunca vira antes aquela escrita, mas mesmo assim, achava muito semelhante a um livro dos magos, um grimório. O mercenário fez uma careta e guardou o livro, sem que ninguém o observasse.
Como todo anão ele não gostava de magia. Era fato que brandia a Lâmina Glacial, mas era, em sua visão, muito diferente da mágica dos arcanos. O poder do machado vinha de seu Deus Reorx, invocado pelos ferreiros que a fizeram, mas foi o poder dos magos que corromperam uma parte de seu povo eras atrás e foi um arquimago que os levou à Guerra sob os Portões dos Anões.
Thorvalen olhou em volta e pegou as armas que acreditava pertencer aos elfos e assim chamou por seu diminuto parceiro:
- Venha logo sua matraca! Vamos ver como ela está!
- Já tô indo – respondeu Dális.
O neidar não percebeu que o gnomo estava em um estranho silêncio, aturdido com a imagem que estava contemplando. Ele via o corpo de uma elfa morta, mas não outra elfa e sim a mesma que acabaram de levar para as carroças. Ainda tentando entender aquilo ele se virou e seguiu o anão proscrito, que nada tinha percebido.
Foi um Grimur abatido que viram na carruagem, pois estava tentando estancar as terríveis lesões da kagonesti, mas a esperança já o tinha abandonado. Os ferimentos eram sérios demais e não se podia fazer nada ali.
O guardião murmurou uma reza a Habakkuk, seu Deus. Foi então que viu, entre os pertences da vítima um saquinho típico para se carregar bandagens. Ele pegou a bolsa e viu que estava cheia de uma planta que ele conhecia bem.
- Uma Orvalho-da-aurora! – disse com alegria. – Essa erva tem propriedades curativas, vai ajudar muito!
O alívio foi sentido por todos e com aquelas ervas a elfa foi curada.



Dois dias se passaram para que a kagonesti abrisse os olhos, mesmo que por pouco tempo, pois ainda estava abatida com a saúde febril. Estava nas casas de cura de Solanthus sob os cuidados dos Crentes na Restauração, um grupo de sacerdotes pagãos que não acreditavam nos Deuses da Ordem das Estrelas.
Entretanto ela não teria sobrevivido até ali se não fosse o uso de suas próprias ervas. Ninguém se espantou ao saber que o nome da elfa selvagem era juntamente Orvalho da Aurora!
Os hospitalários cuidaram dela o melhor que puderam, mas seus ferimentos eram cruéis, pois tinham sido causados pelas lâminas peçonhentas dos draconianos e nenhuma cura, mesmo mágica, era capaz de sanar aquele mal tão rapidamente.
Temiam que aqueles ferimentos se agravassem com a viagem, mas não puderam persuadir Thorvalen a deixá-la, nem com a ajuda de Dális, que tinha se aquietado com tristeza pelo estado da jovem.
Aquela tristeza era sentida por todos, ninguém gostava de ver uma moça tão pequena e delicada estar sofrendo assim. Não era a mulher mais bonita que já tinham visto, mas possuía a beleza selvagem de uma flor do campo. Forte e ao mesmo tempo delicada, de expressões meigas, mas com espírito guerreiro.
Orvalho da Aurora tinha a pele morena que podia ser percebida nas sumárias roupas feitas de pele de cervo. Marcas de lutas cobriam seu corpo musculoso, mas tinha uma beleza que apenas uma jovem do povo élfico podia ter. Seus olhos cor-de-mel tinham uma luz indomável em contraste com as franjas de seus lisos cabelos castanhos que tinham feixes de loiro, indicando algum ancestral incomum.



A caravana seguiu viagem e Orvalho da Aurora os acompanhou sob os cuidados de Thorvalen que cuidava diligentemente dela. Seus ferimentos eram tão sérios que demorou mais uma semana para que a jovem pudesse recobrar plenamente sua consciência.
- Estamos no quarto Mishan do mês de Riaverde, pelos nomes dessa terra – informou Thorvalen. – Já atravessamos o rio Vingaard e estamos em um local chamado Lar do Cervo, um campo que fica entre o rio e as montanhas. Devemos chegar em Relgoth apenas um dia, mas está vindo uma chuva daquelas, se quer saber.
A elfa kagonesti podia ver o anão da colina sentado do outro lado da carruagem. Ele estava com seu machado e besta encostados na parede ao lado e fumava um cachimbo de algum tabaco com um cheiro muito forte.
Ela se sentou, pois estava nas cadeiras da carroça adaptadas na forma de uma desconfortável cama, e deu uma boa olhada pela janela.
- Não irá chover até chegarmos lá – explicou a kagonesti, com um tom ríspido; – E vejo que a caravana continua mesmo eu estando machucada!
- Bah, humanos! – respondeu o mercenário. – Ainda do pior tipo, mercadores!
- Humanos e um anão! Espero que não tenham me roubado nada!
As palavras rudes da elfa tinham um motivo. Seu povo era selvagem e por isso sempre foram maltratados e expulsos de suas terras, mesmo pelos outros elfos. Por isso eram sempre tão desconfiados e ferozes. No entanto, o neidar não a compreendeu e ficou furioso. Levantou-se e disse:
- Aqui está seu livro – fez uma pausa para entregá-la. – Pelo jeito está melhor, então meu assunto aqui acabou. Não precisa agradecer por ter salvado a tua vida!
- Espere! Onde estão meus companheiros?
- Mortos! – a resposta rude assustou o próprio mercenário. – Enterramos como se faz nessas terras.
- Oh! Obrigada! – gaguejou a kagonesti com os olhos já marejados. – Desculpe meus modos, sei que lhe devo muito!
Thorvalen fez uma careta e saiu, mesmo com a carroça em movimento. Pulou com o machado nas costas e não queria mais saber daquela garota mal-agradecida. “Como todos aqueles fúteis elfos”, ele pensou, já devia ter imaginado que seria assim. Então por que estava tão irritado?
Orvalho da Aurora se prostrou dentro da diligência em que estava e iniciou um canto especial, um réquiem élfico, pelos amigos que perderam a vida. Pelo descanso de Hurian e Thandro em sua malfadada missão. Ela olhou para o livro e teve um certo conforto ao saber que suas mortes não foram em vão. Devia muito ao anão realmente.
Envolta em seus pensamentos ela quase não percebeu os sons de batalha do lado fora e só notou que algo estava estranho quando a carruagem parou. Olhou pela janela e viu o ataque, assim pegou a enorme lança e o arco que eram de seus parceiros, mas viu que estava ali também a Aljava de Silvanos.
Era um estojo de flechas que parecia simples, mas era encantado com a magia dos elfos. O coldre podia levar muito mais flechas que aparentava e não apenas isso, mas lanças e azagaias também. Bastava apenas que seu portador focasse seu pensamento em um item que estava na aljava que surgia magicamente. A kagonesti colocou a lança dentro e saiu preparando o arco.
A caravana estava sendo atacada por alguma tribo goblin, pois ela podia sentir seu mau cheiro antes mesmo de vê-los. Subiu na carruagem, com dificuldade, para ter uma melhor visão, e não estava tão errada.
Uma vez lá em cima, pôde observar o estandarte dos Cães Sedentos, uma estirpe que vivia nas terras ao sul de Solamnia, por isso ela estranhou ao vê-los tão longe. Algo estava muito errado!
As hordas de goblins vinham em dois grupos: um grupo de infantaria, chamados de farejadores, pois eram todos rastreadores, e o outro grupo de cavalaria, chamados de montadores, pois campeavam em seus worgs; os lobos gigantes que tinham domado há tempos atrás.
A elfa tirou uma flecha da Aljava de Silvanos e retesou seu arco o melhor que pôde, pois ainda estava muito fraca e seus músculos não se enrijeceram totalmente. Ela mirou em um inimigo com muita dificuldade dizendo:
- Morre cachorro maldito!
A seta atingiu uma das criaturinhas que estava portando a bandeira de guerra, que caiu imediatamente morta. Orvalho da Aurora virou rápido para o outro porta-estandarte, mas sua visão ficou bruxuleante e teve que parar para não cair. Estava tonta devido aos seus ferimentos e ficou brava por se sentir inútil.
Recuperada, ela ouviu a voz de Thorvalen ao longe:
- Não vai vir aqui conhecer Lâmina Glacial? Ótimo, duende, ela vai até tu!
O anão da colina alvejou, com seu machado, o último goblin que ainda tinha a bandeira de sua tribo e o arremessou longe, fazendo o monstrinho cair nos braços da morte. Ele então tentou pegar sua besta, mas percebeu que a tinha deixado, em meio à sua raiva, na carruagem da jovem selvagem. Xingou a si mesmo e quase não viu quando o worg se aproximou e o derrubou no chão.



A elfa ficou desesperada, pegou mais uma flecha e se aprontou para atirar, mas não conseguiu mirar, pois a carruagem meneava devido à forte pancada que a quase tombou. Olhou para baixo e ficou totalmente pasma.
- O Bugbear!
O bugbear e não um bugbear. A kagonesti reconheceu seu algoz, era uma das criaturas que a tinha atacado, um dos malditos que mataram Thandro e Hurian. Tinha voltado por ela, como todos de sua raça asquerosa, o monstro odiava os elfos e podia caçar tranqüilamente com seu faro de urso, o que tornava seu povo ótimos rastreadores. Aquele parecia o maior dos goblinóides, refletiu a jovem, e estava vigorosamente empurrando a carroça para derrubá-la.
Dális, que via a tudo escondido de baixo de uma diligência, tomou coragem e saiu correndo em meio aos cães goblins. Olhou para todos os lados procurando pelo seu companheiro anão e finalmente o achou e gritou por ele na esperança que ainda tivesse tempo para salvar sua nova amiga.
Entretanto a tática do bugbear deu certo e Orvalho da Aurora se estatelou no chão. Alguns de seus ferimentos abriram novamente causando uma dor nauseante. Ela vomitou sangue e, com a visão turva, mal percebeu o algoz se aproximar.
Ele a ergueu pelos cabelos e colocou seu focinho próximo ao rosto dela. Começou a falar algo em língua comum com um forte sotaque, que a kagonesti não entendeu devido à tontura. No entanto, ela sentiu bem a fedentina que exalava de sua boca cheia de dentes podres. Seus olhos lacrimejaram e finalmente estava entendendo o que a besta queria.
- Onde o livro tá, elfa vadia? – disse toscamente o homem urso. – Vamô; fala logo! Thurk moer ocê, Thurk ter levá livro pro Crod, Thurk moer ocê!
A criatura agarrou a cabeça da elfa com as duas mãos e começou a esmagar. Aquilo dava um prazer inenarrável para o bugbear, que pôde sentir os primeiros ossos estalando. Ele era um monstro perto dela, tinha mais de dois metros de puros músculos e pêlos; ela, embora forte como toda kagonesti, era pequena e de aparência frágil, perto dele.
Estava quase perdendo a consciência quando caiu...