Ascensão do Inimigo

A Guerra da Lança tinha chegado ao seu fim, grandes cavaleiros se sacrificaram para manter a paz, mas o exército maligno não tinha sido derrotado totalmente. Em sua poderosa fortaleza a Dama Azul ainda planejava um último ataque de sua Armada Dracônica aos Reinos de Solamnia. No entanto, um mal muito mais antigo foi despertado sem o conhecimento de nenhum dos lados. Um inimigo incrivelmente poderoso que usa sutilmente sua influência sombria para alcançar seus objetivos. Cabe a um grupo de bravos heróis confrontar esse perigo avassalador que a todos domina. O Sussurro das Trevas é um épico de fantasia dividido em três partes que narrará uma saga no mundo de Dragonlance.

Poema dos Seis Heróis

“A palavra será a redenção dos pecadores
Apenas o mais misericordioso a portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

O escudo será a proteção dos desamparados
Apenas o mais honrado o portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

A espada será a justiça dos oprimidos
Apenas o mais temerário a portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

O cajado será a lei dos desesperados
Apenas o mais prudente o portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

A flecha será o equilíbrio dos soberbos
Apenas o mais sábio a portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas

O machado será a vingança dos esquecidos
Apenas o mais audacioso o portará
O Mal rastejará novamente para as profundezas”

sábado, 22 de maio de 2010

Capítulo III - Ela era uma Maga Agora

Selanthara caminhava indolentemente pelas casas de madeira envernizada quase não contendo sua própria felicidade, quase não demonstrando seu típico estoicismo. Tinha realizado um grande feito desta vez e com certeza saíra vitoriosa no Teste dos Magos de Alta Magia, a provação que todo aspirante a mago, todo neófito, deveria passar ou seria inexoravelmente caçado pela Ordem como um renegado. Seu mestre deveria estar muito orgulhoso naquele momento, ele não se arrependeria de ter confiado nela.
Ela era uma maga agora.
Mesmo em meio a toda essa alegria, a toda a sua satisfação, a aprendiz de mago pode ver o temor nos rostos das pessoas da pequena cidade solâmnica. Bem, Olmeiro não ficava exatamente em Solamnia naquele período. Estava, em verdade, na divisa leste com o outrora condado de Lemish, entre as colinas de Granada e a cordilheira meridional de Dargaard. Embora fique apenas a dois dias a cavalo de Solanthus, hoje a cidade estava mais próximas das mãos da infame Kitiara uth Matar, a Dama Azul, do que dos lordes cavaleiros.
A comunidade ficava na Floresta Enegrecida, que se estendia por quase toda Lemish, que continham vários tipos de plantas caducifólias, ou olmos como eram mais conhecidas. Essas olmeiras tinham grande importância devido à madeira negra que era retirada de seus arvoredos. Principalmente da Senhora-dos-Prados, que tinham o nome por “desafiar” as campinas, era constituída por um material de alta qualidade e muito resistente. Majestosa chegava a trinta metros de altura e era ótima para a construção de casas e muito utilizada por toda Solamnia.
Seus produtos eram levados ao sul para Porto do Chamado, que tinha o monopólio do transporte, para ser vendido a várias nações pelo Novo Mar. A “madeira de lei” era o principal produto comercializado pelos povos de Lemish e; junto com os cogumelos, legumes e as ervas; faziam parte de todo o seu sustento. Logo a floresta era vital para a sobrevivência dos lemishianos. Muitos trabalhavam nas matas, mesmo com as lendas e superstições que rondavam suas mentes e, de fato, não apenas animais viviam naqueles bosques lúgubres.
Assim a cidade era responsável pelo comércio de madeira com Solamnia, saindo do monopólio do Porto, e constituía quase um terço da economia do condado, o que não era pouco. No entanto, os olmeiros não tinham noção exata de sua grande importância. Como uma vila que cresceu rápido demais, a mentalidade conservadora ainda influenciava seus cotidianos. Eram, de certo modo, ainda muito provincianos, mas isso mudaria, pois Selanthara tinha passado no Teste com certeza.
Ela era uma maga agora.
Ao passar pelas largas ruas, todos que a viam tinham suas esperanças revigoradas. A jovem os inspirava e não era sem motivo. Ela era uma mulher linda, a mais bela que todos tinham visto em sua vida. Alta, muito alta na verdade, com um corpo bem desenhado que, sutilmente admirado por todos, estava envolto por suaves robes de seda Weya-Lu. Seus cabelos bem aparados e ruivos, raros naquelas terras, que tinham um brilho flamejante comparado apenas pelo ardor de seus olhos verde-esmeralda. Possuía um caminhar tão gracioso e delicado que causaria inveja as mais nobres damas da corte élfica.
Ainda muito jovem para vestir os Mantos Negros, é verdade, mas possuía uma confiança inabalável e um alto controle que impressionava até aos sábios arquimagos de Alta Magia. Era altiva e fria como uma escultura de mármore e sua natureza introspectiva davam a arcana um ar de mistério e fascinação. Assim, andava com passos firmes e determinados que alumbrava a pequena cidade.
Dirigiu-se ao centro com as expressões herméticas dos aldeões incluindo sua soberana Lady Herra que, convidativamente, a esperava nos portões do Palácio de Khalaran Shirak. O palacete era a única construção de pedras em toda aquela paisagem em mogno. Alguém com olhos mais atentos logo percebia que a construção era anterior a cidade, tratava-se na verdade de um antigo monastério cuja origem poucos conheciam agora, já que há muito, os monges tinham abandonado o local por motivos agora, acreditavam, imemoriais.
A Senhora de Olmeiro vinha de uma família antiga e nobre do Forte Espumante, que tinha esse nome devido a sua proximidade com o mar, onde suas ondas se quebravam na muralha, mas estava em ruínas agora.
Sua família se refugiou no Porto do Chamado e tornaram-se os principais comerciantes da Erva-dos-sonhos, mas sem grande dote, acabou por morar ao norte da Floresta Enegrecida.
Uma mulher de postura aristocrática e educação refinada. Era bonita, de cabelos castanhos claros que ondulavam sobre seus ombros. Tinha olhos grandes e amendoados que, diziam, encantavam qualquer pessoa. Pequena e magra lhe concebendo uma aparência de delicadeza, mas essa impressão que logo desaparecia diante ao seu porte nobre e firme. Extravagante, usava várias jóias e uma fina tiara que revelava sua posição.
Fez uma grande mensura, como convinha à situação, e convidou a jovem visitante a entrar em seu palácio:
- Seja bem vinda, minha cara dama Selanthara.
- Obrigada pela hospitalidade Milady. É uma honra estar em Khalaran Shirak! – respondeu a jovem maga em solâmnico e sem sotaque, causando estranheza em Herra.
- A honra é toda nossa! Faz muito tempo que esse palácio não recebia a visita de um Alto Mago, não?
- Certamente! Embora tenha sido construída por arquimagos há muito tempo, nenhum a visitou em toda a Era do Desespero!
- Então é realmente uma honra!
As duas mulheres entraram no palácio e, acompanhadas por um dos guardas, se dirigiram às escadarias da direita no salão de entrada. No primeiro andar foram até a sala de reuniões na extremidade norte da construção e subiram mais uma escada, essa em espiral, que levou a uma porta trancada, a única que a visitante tinha visto assim, e uma vez aberta pelo soldado, elas logo entraram. O homem fechou, com uma exagerada mensura, a porta e esperou do lado de fora, como se fosse uma típica ronda.
Seria ali o local para discutir os termos da submissão da pequena cidade de Olmeiro ao poder da grandiosa Lemish e assim, obviamente da, não menos poderosa, Armada Dracônica Azul. Era para isso que a arcana estava ali e não por outra coisa, se não por aquele momento de glória que tanto tinha lutado.
Selanthara unificara, há duras penas, os goblins da região. Os Arranca Crânios, Cães Sedentos, Devoradores de Tripa, Faca da Morte e até os indômitos Presa Ensangüentada, todas as tribos sob seu comando. Tudo como seu mestre desejara e agora, finalmente, teria alcançado o título da ordem de Alta Magia.
Ela era uma maga agora.
Estavam em um escritório, o único cômodo daquele andar. Tinha quatro enormes janelas, cada uma apontando para um ponto cardeal e, estando todas abertas, seria claramente a única fonte de luz naquela tarde. Tinha uma pequena escrivaninha adjacente à janela sul, quatro poltronas no centro e onde não havia janelas na parede, havia prateleiras com antigos livros.
As jovens se sentaram e não demorou muito para que trouxessem algo para beber.
- Suco de maçã? – ofereceu Lady Herra.
- Obrigada! – agradeceu a neófita e bebericou o refresco.
- Bom, quero lhe assegurar que nossa rendição é total!
- Ora, não se trata de uma capitulação e sim de um acordo. Acredite!
- Hum, difícil acreditar em sua boa vontade, arcana, com a minha cidade cercada!
- Posso dispensa-los se te causa tanto desconforto, Milady. Fazem parte apenas de minha guarda pessoal, te garanto! Além do mais, não ficarei aqui por muito tempo, quero apenas apreciar sua biblioteca e já partiremos, não tenha dúvida.
- Quanto aos termos desse tal acordo?
- Estão aqui, podes ler enquanto fico aqui. Não é nada demais, o comércio com Solamnia continuará em tempos de paz, seus negócios estão seguros, tem minha palavra. Nada mudará!
- Certo!
A Lady daquela pequena cidade sabia que aquilo era uma ilusão, e percebeu a fragilidade do acordo com o “em tempos de paz”. Havia uma outra guerra em iminência, sua experiência permitia perceber que aquele momento era apenas a calmaria antes da tormenta. Entretanto, se esse raciocínio não fosse o suficiente para convence-la, as diferentes tribos de goblins, que só trabalhavam juntas com um líder forte, seria um indicativo suficiente para saber que uma guerra total estava surgindo no horizonte. Sabia que tinha que fazer algo para sobreviver.
Ela olhou para os arredores dali, e viu que não havia apenas goblins, mas seus parentes hobgoblins e bugbears também formavam o corpo do regimento sob o aparente comando da maga, e sentiu um medo avassalador. Embora não soubesse, havia outras criaturas muito mais perigosas que Lady Herra não conseguia ver, mas apenas supor, que faziam parte do séquito de sua convidada. Estranhos grunhidos e urros a incomodavam visivelmente, tornando o ar pesado.
Selanthara percebeu isso e disse calmamente:
- Meus exércitos cuidaram do Senhor da Floresta!
- Mesmo?
Muitos podiam considerar que o Senhor da Floresta seria apenas uma lenda, um conto para assustar as crianças, e assim, amedrontá-las o suficiente para que elas nunca se perdessem na Floresta Enegrecida. Entretanto como soberana dos olmeiros sabia a verdade. Lenhadores sumiam para nunca mais serem vistos e todas expedições de caçadores falhavam miseravelmente. Havia alguém, ou melhor, alguma coisa naquele bosque.
Teria, a aprendiz dos Magos de Alta Magia, realmente extinguido aquele terror? Seria muito bom, pois assim os homens iriam mais ao fundo, e com maior dedicação, para o interior da mata. Um bom incentivo aos seus negócios. No entanto, aquela neófita teria realizado tal feito? Teria poder para tanto?
Parecia que a mulher tinha lido os pensamentos da senhora de Olmeiro, pois ela a olhou com arrogância, mas suas expressões eram tão transparentes que Selanthara nem precisaria. Sua decepção era óbvia e não havia outra saída, se não aceitar os termos do acordo.
A imponente visitante se satisfazia com tudo aquilo e ficara orgulhosa de si mesma. Tinha subjugado a última cidade da fronteira de Solamnia e nada estaria fora de seu controle, nada a deteria desta vez. Tudo ocorria exatamente como fora planejado. Seu treinamento estava completo.
Ela era uma maga agora.
- A deixarei aqui como me pede. – falou Lady Herra, esquivando-se de uma solução para o acordo – Me chame conforme seu desejo.
- Farei isso com certeza, Milady. Obrigada! – agradeceu a arcana e esperou a saída sua anfitriã e disse para o aparente vazio. – Já pode se revelar Seleth, ela já foi!
- Sei que ela se foi neófita!
Uma estranha voz respondeu a arcana. Logo uma imagem onírica foi se formando na frente da mulher que não esboçou nenhuma reação. A figura se tornou visível, era um draconiano. No entanto, não um simples homem-dragão, mas o mais poderoso deles, um Aurak.
Sorrateiramente Seleth caminhou em volta da maga parecendo que ele daria o bote, faria um ataque soturno, a qualquer momento. Muitos, mesmos alguns Altos Lordes Dracônicos, teriam medo diante do hediondo monstro, mas Selanthara não esboçou nenhuma reação, o que causava grande curiosidade no assassino dourado e sempre o deixava incomodado.
- Está com fome, minha Navalha no Escuro?
Perguntou desafiadoramente a mulher usando a alcunha do matador dracônico, era famoso por se alimentar do coração das suas vítimas, e às vezes matava apenas para se alimentar. Como aurak ele podia se alimentar de qualquer coisa e junto a isso, todo draconiano dourado gostava de ficar com souvenires de suas vitimas, assim uma coisa levava a outra lhe dando um hábito nefasto, é verdade, mas que aterrorizava seus inimigos.
Seleth gostava desse nome, sempre nas sombras, sempre sozinho. Auto-suficiente, julgava-se superior aos outros e não gostava trabalhar com seres inferiores, como ela. Então pronunciou revelando:
- Não encontrei o que procura aprendiz dos Magos de Alta Magia!
Havia sarcasmo nas palavras da criatura, que sempre a provocava fazendo questão de lembra-la que ainda não era uma maga. Os auraks sempre faziam isso, pois sabiam de sua origem, e por isso tinham consciência que eram os mais poderosos draconianos de todos. A arrogância estava na personalidade de todos homens-dragão dourados.
- Já sei disso meu caro e sei onde está agora! – disse Selanthara.
- Então meus serviços não são necessários... – comentou o monstro, ainda com arrogância.
- São sim, porque o grimório não está aqui!
Navalha no Escuro não pode conter seu espanto. A neófita tinha revelado o conteúdo da caixa, um grimório, um livro de magias. Foi então que percebeu o que estava acontecendo. Olmeiro era realmente importante, mas não apenas pelo ouro que traria aos cofres da Armada Dracônica, mas traria a ela um dos artefatos mais procurados de todos, o Grimório de Magius.
Claro! O Palácio tinha sido construído há muito tempo para guardar seus segredos e seu próprio nome, Khalaran Shirak, era o nome da mais famosa magia de Magius, capaz de expulsar para sempre uma entidade extraplanar. Indagou-se sobre o por quê daquela demanda.
- Então, obviamente, quer que eu o ache? – perguntou a criatura.
- Sim, os Cães Sedentos acharam o rastro de três elfos saindo daqui e se dirigindo a Solanthus.
- Hurf, farejadores goblins! Não dá para confiar neles.
- Mesmo assim é melhor conferir, leve um dos Retalhárvores com você. Se forem elfos, nada melhor que ter um bugbear para caçá-los.
Essa era uma ordem direta. A arcana tinha feito isso para manter sua autoridade e o homem-dragão sabia disso. Como ele sempre a provocava, ela tinha que mantê-lo na linha e embora nunca admitisse isso, o assassino dourado a admirava nesses momentos. Seria uma grande comandante.
Ela era uma maga agora.
Entretanto o draconiano não gostou da idéia, não queria trabalhar com ninguém. Qualquer que o acompanhasse, provavelmente, mais o atrapalharia mais que o ajudaria. Seria um peso morto, sem dúvida. Contemporizou aquela conflitante situação e traçou rapidamente um plano.
Veja bem, Seleth não era o aurak mais sagaz dos exércitos da Rainha das Trevas, mas tinha a incrível capacidade de raciocinar rápido sempre se adaptando as mudanças e reviravoltas, esse era o seu talento.
Teria que levar mais companheiros realmente, mas se isso não tivesse remédio então que fossem outros draconianos, que ao menos fossem outros de sua letal raça. Enfim, com firmeza disse:
- Levarei um grupo avançado de draconianos e nada mais!
- Pode levar quem quiser, não tem importância, mas o bugbear vai também, como eu ordenei e isso é um fato! – e continuou com palavras firmes – Estamos entendidos ou terei que substituí-lo?
Os olhos reptillianos ficaram vermelhos de raiva e o monstro encarou ameaçadoramente a aprendiz dos Magos de Alta Magia, mas esta não desviou o olhar, continuando com seu eterno estoicismo. Navalha no Escuro não encontrou fraqueza nenhuma nela, então foi obrigado a desviar o olhar.
Embora ainda desconfortável Seleth, obediente, fez uma mensura e voltou as sombras, de onde saíra, mas não antes de escutar o último insulto de sua chefa:
- Não falhe comigo desta vez!
Selanthara finalmente pode se permitir livrar-se de suas obrigações. Estava totalmente sozinha agora e ninguém entraria lá sem que assim pedisse. A noite já tinha caído a arcana agradeceu a isso, pois ficava muito mais à vontade na escuridão.
Olhou pela janela e viu a escura Nuitari, a lua que apenas os magos de mantos negros podiam ver, em quarto minguante e isso não a confortou. Também podia ver a Solinari em plena quarto crescente. A lua prateada ascendendo e a lua negra declinando, isso não era um bom presságio, ou ao menos, não para ela.
Desviou desses pensamentos agourentos e voltou a sentar pesadamente na desconfortável poltrona do palácio de Olmeiro. Totalmente relaxada quase nem percebeu que assumira sua forma verdadeira agora. A neófita não era humana.
Mesmo olhando para ela agora, mesmo vendo sua pele azul de extrema maciez e beleza, muitos não saberiam que criatura era aquela. Apenas os grandes sábios, os estudiosos do passado e aqueles que não deixam a história se tornar lenda, poderiam dizer o que se tratava de uma Irda.
Um Alto Ogro, muito diferente das decadentes criaturas, estes estão mais próximos da raça original e não foram amaldiçoados pelos deuses como os outros. Não eram malignos a despeito de sua origem, sempre buscavam ser bons e justos, mas por sofrerem terríveis maus-tratos das outras raças, preconceituosas, eles há muito aprenderam a se transformar, escondendo suas verdadeiras formas durante a vida inteira.
Assim, momentos como aquele eram raros para Selanthara. Apenas longe dos olhos dos outros indivíduos é que poderia assumir sua forma verdadeira. O preconceito que sua raça sofria era ainda mais implacável, pois há muito, os Irda tinham renegado sua origem maligna e abraçado à causa do bem, mas ela era diferente. A arcana não era assim, não tinha vergonha de sua origem, pelo contrário, tinha orgulho por ter sido criada pela suprema Takhisis. Totalmente dedicada a Rainha das Trevas, tornou-se uma seguidora do filho da Deusa, o maligno Nuitari, o Noturno.
Novamente foi admirar a lua obscura que, não refletindo a luz do sol, não passava de um ponto escuro no céu, mas aqueles que usavam a arte negra da magia podiam vê-la de outra forma e assim apreciar sua perversa beleza.
Entretanto algo aconteceu, uma coisa que a maga não esperava, ou ao menos não agora. A jovem mulher pode ouvir palavras que eram trazidas magicamente, quase que como singelos ecos, pelos ventos uivantes da noite. Tentou identificar o que era, mas a voz sibilante rapidamente revelou sua nefasta origem.
- Saiu-se muito melhor que o esperado, minha aprendiz.
- Obrigada, meu mestre e arquimago Velthorm. – respondeu a neófita – Entretanto não estou com o grimório!
- Ele será seu presente por ter concluído o Teste de Alta Magia. Seu presente mágico!
A felicidade invadiu a mente de Selanthara. Um presente como aquele não era concedido para qualquer um que fosse aprovado no Teste, mas apenas para aqueles que o faziam quase perfeitamente. Tentando esconder seus sentimentos, como era o costume de sua raça, ela falou:
- Na verdade está quase em minhas mãos, meu mentor. Logo teremos o Grimório de Magius!
- Certamente, mas esse assunto não mais ocupa meus pensamentos!
- Mestre! Achei que era seu objetivo também se apossar do objeto?
- Achou não? No entanto, agora outro livro, bem mais antigo, me revelou a Última Torre.
- Harkiel?
- Sim, a dragoa vermelha finalmente me concedeu o livro!
- Como Dracart recebeu isso?
- Mal eu imagino, mas não tem relevância! A cada dia estou mais próximo de meu objetivo principal.
- Irá partir agora, imagino...
- Claro que imagina, não é mesmo? Entretanto não o farei, pois ainda tenho que fazer os preparativos. Conjurar o Antigo não é uma tarefa que pode ser feito com magias vulgares, são rituais Selanthara, rituais ancestrais!
- Sim, eu compreendo mestre!
- Compreende? Antes de ir devo passar por Olmeiro. Quero que faça algo por mim e não deve tardar.
- Estou as suas ordens, meu mestre!
- Preciso de crianças, bem jovens ainda! Não sei o número certo, mas é melhor conseguir dez no mínimo?
- Como farei isso meu senhor?
- Ora! Você domina as cidades do norte de Lemish, peça como tributo!
- Não posso! Sou protetora dessa gente, não uma vil tirana!
- Não importa como vai conseguir, apenas faça!
A Irda sentiu a presença de seu poderoso mestre esvair-se. Sentou novamente e tentou encontrar uma solução. Se ela exigisse de Lady Herra as crianças ela teria uma rebelião com certeza, mas não poderia desagradar seu mestre de forma alguma. Pela primeira vez em muito tempo, não sabia o que fazer.
Olhou para a escrivaninha, buscando um resultado para seu novo e perturbador contratempo. Então viu algo que não estava lá antes. Era um robe dos Magos de Mantos Negros, que só por eles poderia ser usado. Concluiu que o arquimago Velthorm estava oficialmente a admitindo entre os Magos de Alta Magia.
Rapidamente tirou suas leves roupas que trouxe de Khur e, como uma ninfa, ficou nua sob a Solinari. Sua tênue pele azul brilhava refletindo a luz prateada da majestosa lua. Deslizou os dedos no traje sentindo claramente a arte refinada da magia em todo o seu traçado. Pode ler as inscrições de proteção contidas em seu tecido.
Admirada vestiu delicadamente a escura vestimenta e se aprumou. Sim, tinha alcançado os seus desejos e estava tão satisfeita que se dissipou completamente as névoas que a impedia resolver seus problemas. A resposta era fácil e obvia. Iria recorrer aos caçadores de escravos do Chifre Quebrado. Assim não raptaria as crianças de Olmeiro e seu impiedoso mestre teria o que pediu.
Selanthara sentiu orgulho de sua própria inteligência e, em seus novos mantos negros, empertigou-se. Seria uma arcana que teria seu nome lembrado na história de Krynn. Os estetas escreveriam sobre ela e os heraldos proclamariam versos em sua homenagem. Nada poderia impedi-la desta vez...
Ela era uma maga agora.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Capítulo II - O Cavaleiro e o Mago

Nossa história começa, de fato, na Era do Desespero, em seus últimos anos, chamada pelos estetas de Período dos Dragões. Precisamente 356 anos após o Cataclismo, em um lindo amanhecer do segundo dia de Kirinor do mês de Riaverde. Era a aurora da primavera, e mesmo assim, quase na metade do mês, ainda podia se ver a neve nas montanhas. Isso, claro era incomum, mas não impossível. Apenas mostrara o quanto o inverno tinha sido rigoroso naquele ano.
Sir Hector Launwaine olhava distraidamente, enquanto escrevia em seu diário, o gelo derretendo nas montanhas, mas não eram quaisquer montanhas. Ele estava na Rota dos Cavaleiros, que ligava a capital Palanthas ao Forte Vingaard, e de fato ficava entre uma cordilheira, também conhecida pelo nome Vingaard, o mais famoso complexo de montanhas de Solamnia.
O cavaleiro estava entretido com a deslumbrante paisagem, já havia atravessado a famosa Torre do Alto Clero há não mais de um dia e, assim sendo, não faltava muito para chegar ao seu destino, à bela Relgoth, a Cidade dos Leões de Bronze, sua terra natal.
A cadeia de montanhas e a Torre formavam uma defesa formidável para Palanthas e realmente salvou a “Jóia do Norte” durante a Guerra da Lança. No entanto, cobrou um alto preso, a vida de seus preciosos Cavaleiros de Solamnia, incluindo o valoroso Sturm Montante Luzente.
Sir Hector era apenas um garoto na época e ainda estava sendo treinado em Sancrist, onde ficava a sede da cavalaria. Estava lá na histórica nomeação de Sturm e foi a única vez que ele o viu, infelizmente, mas mesmo assim, seus atos de bravura o inspiraram. Sempre foi o sonho de seu pai que ele se tornasse cavaleiro e agora ele voltava para casa como um recém-nomeado Cavaleiro da Coroa. Todos ficariam orgulhosos.
Ele estava muito diferente do que seus familiares se lembrariam. O cavaleiro tinha se tornado um homem alto, mesmo para os padrões solâmnicos. Tinha os olhos azuis, típicos daquela terra, mas seus cabelos eram curtos e castanhos escuros, diferentes do comum loiro do lugar. Tinha o bigode bem cuidado, como todos da cavalaria, mas o mantinha curto. Era muito musculoso, a ponto de perder a agilidade para esquiva, como dizia Lorde Gunthar, seu instrutor, mas compensava sua defesa portando um grande escudo de metal.
Seu escudo possuía o emblema dos Cavaleiros de Solamnia, um martim-pescador com escudo no peito, uma coroa na cabeça e pisando em uma espada emaranhada de rosas. Obviamente a coroa, espada e rosa eram símbolos das três ordens de cavalaria solâmnica e o pássaro era o símbolo daqueles reinos. Sir Hector adoraria usar o escudo de seu clã, mas isso era permitido apenas para o cavaleiro mais velho de sua família, no caso seu pai.
Já estava com a armadura típica dos Cavaleiros da Coroa, feita de aço, que era raro em Ansalon, devido a tantas guerras. Uma proteção finamente trabalhada com uma grande coroa entalhada no peito. Era uma Armadura de Batalha completa, que o tornava ainda mais lento, mas cobria-lhe o corpo inteiramente. Seu elmo tinha asas de pássaro esculpidas nas laterais, uma homenagem a Habbakuk, o Deus padroeiro de sua ordem.
Possuidor de uma espada longa, típica dos cavaleiros, mas esta também era muito bem forjada, encravada de jóias. Junto ao seu escudo tinha o balanço perfeito e ele sempre treinava o combate de ataque e defesa, espada e escudo. Era a única arma que o cavaleiro possuía e, como descrito na Medida, era a única que deveria possuir, embora ultimamente tivessem aparecido mais e mais cavaleiros arqueiros e é claro, sempre havia aqueles que usavam a lança de cavalaria.
O nobre se levantou, julgando que já era hora de continuar a jornada, foi até seu cavalo, prendeu a espada em sua sela e voltou-se para seu companheiro que ainda estava em sono profundo.
- Acorde, Valdor. Já é a hora do despertar!
- Ah, o problema de vocês cavaleiros é que se levantam muito cedo!
- E o seu é o ócio, eu imagino! Vamos, a estrada nos espera!
Assim o dorminhoco companheiro do Cavaleiro da Coroa se levantou. Valdor era um amigo de infância de Sir Hector, mas não era um nobre. Vindo de família que servia aos Launwaine, os dois foram criados juntos. Essa amizade rendeu uma educação aprimorada ao jovem camponês que, uma vez pajem, tornou-se escudeiro do cavaleiro.
Enquanto Launwaine estudava em Sancrist o jovem fora para o Colégio de Bardos Ergothiano, em Lancton. Era o maior centro de heraldos, como eram chamados os bardos em Solamnia, de toda Ansalon. Lá aprendeu Filosofia, Heráldica, História, Música, Religião, entre muitas coisas, mas o que mais gostava, o que mais se gabava de ter aprendido bem era a Oratória, e nisso ele era realmente espetacular.
No entanto, seu corpo também foi educado. Sabia usar uma espada, não tão bem como um cavaleiro, mas sabia. Logo ele tinha um sabre em sua cintura, mas esta não era sua única arma. Também tinha uma besta incomum. A arma tinha um mecanismo de repetição que podia disparar dez quadrelos sem ter que recarregar. Um presente do seu amigo que a conseguiu com os gnomos em sua passagem pelo Monte Deixapralá.
Assim o heraldo tinha a estatura típica de um solâmnico, ou melhor dizendo de um nobre, pois era bem alto. Seu corpo era esguio, ao contrário do companheiro, dando-lhe uma leveza e graça impressionantes. Tinha cabelos loiros na altura dos ombros e olhos verdes. Sempre sorria e carregava consigo um alaúde modesto que às vezes tocava.
- Ócio? – disse Valdor – Há algum mal nisso? Ora! Não é outra coisa, senão o ócio que torna a filosofia ergothiana comparável a élfica!
- Sim, e não é outra coisa, senão os escravos, que tornam os ergothianos ociosos! – replicou Sir Hector imitando a forma de falar do amigo.
- Um costume nefasto sem dúvida, mas faz parte da tradição deles, você deveria respeitar isso, cavaleiro, lembra-se? A Medida? Como era mesmo? – O escudeiro refletiu e recitou – Ah, sim. Um Cavaleiro de Solamnia deverá respeitar todas as culturas diferentes e ideais diferentes, ele nunca interfere no livre-arbítrio dos outros.
- Ora, claro que me lembro! Principalmente do quinto livro! – indignado, proclamou o cavaleiro – Um Cavaleiro de Solamnia deverá fortalecer os fracos, enriquecer os pobres, libertar os escravos, proteger os indefesos e dar aos necessitados.
Assim os dois sorriram e o Launwaine voltou a falar.
- Libertar os escravos! Não possuo tua capacidade de interpretação, meu caro amigo, mas veja que a Medida é bem clara aqui!
- Hum! – respondeu Valdor fazendo uma pose exagerada de sábio. – De fato, a verdade flui de suas palavras!
Os dois riram da profunda discussão, como apenas faziam amigos de longa data. Sir Hector olhou com carinho para seu amigo e contemporizou se era possível ter mais felicidade do que tinha naquele momento. Era jovem e cheio de esperança, mal sabia que seu destino lhe reservava uma estrada de maior labuta que aquela por onde seguiam.



Continuaram assim por mais quatro dias de caminhada pela estrada. Falando assuntos ingênuos e rindo deles, os dois atravessavam a cordilheira, despreocupados e tranqüilos. Sob a luz argêntea de Solinari.
- Não disse que era boa idéia iniciar a viagem no segundo Luindia? – perguntou o escudeiro. – Seria mais bonito ver Solinari no céu naquele dia também, mas ter a lua vermelha em pleno crepúsculo nos vigiando sempre é um bom presságio.
- Claro – respondeu Sir Hector. – Mas não use os termos de Ergoth para as datas, meu amigo, os solâmnicos não gostam, você sabe!
- Ah! É verdade! Desculpe! Segundo Palast então.
- Tudo bem! Foi há muito a Guerra das ...
O cavaleiro parou de falar por perceber a mudança de expressão do amigo. Havia algo errado, algo muito errado. Era fim da tarde e Solinari estava quase cheia. Lunitari estava em primeiro quarto e isso dava um leve tom avermelhado na paisagem, dificultando a visão, mas não os sentidos do heraldo.
Sem o elemento surpresa os goblins saíram de seus esconderijos nas montanhas e se prontificaram a interceptar a estrada. Estavam ali para roubar os viajantes, concluíram os dois amigos, criaturas vis sem dúvida. Eram azuis e de nariz enorme, típico dessa região, mas um deles, no entanto, era amarelo. Tinham facas cruéis como arma e usavam pequenos escudos de madeira para se protegerem. Cercaram rapidamente suas vítimas.
- Hum, sete pra cada um! – disse Valdor sorrindo.
- Querem nos roubar, presumo! – falou Sir Hector aos goblins.
- Não! Ocê tá errado! – afirmou o goblin amarelo em uma voz estridente. – Como pode pensar isso! Tamo aqui pra pega...
O goblin que parecia ser o líder parou, olhou para cima como se quisesse se lembrar de algo. Seu companheiro mais próximo, vacilante, cochichou algo em seu ouvido e a criatura voltou a falar.
- Tamo aqui pra pega pedájo, isso sim!
- Ah, essa é boa! – exclamou o escudeiro.
- Pedágio? A mando de quem? – perguntou o cavaleiro.
- Ora, dos home! – respondeu o goblin amarelo.
- Quais homens? Explique-se!
- Não importa, ocês passa o ouro e continua ou não e fica!
- Sinto muito meu caro, não entregaremos nada! Meu nome é Sir Hector Launwaine. Não quero machucá-los, mas terão que me dar passagem!
Os goblins titubearam. A covardia dessas criaturas era conhecida por todos e era para isso que o nobre apelara. Entretanto os monstros eram muitos e mesmo covardes sabiam contar, assim restabeleceram sua moral e permaneceram firmes.
- Escutem-me! – Sir Hector voltou a falar. – Se vocês me deixarem passar eu não vou machuca-los, têm a minha palavra! Minha palavra é minha honra e minha honra é minha vida!
- Ah, quem ocê pensa que é, todo metido com esse bigode aí? Um cavaleiro? Se pah, um Cavaleiro de Solamnia! – gozou um dos goblins.
- Exato, seu tratante! – respondeu Valdor.
O líder do bando já tinha entendido que estava roubando de um cavaleiro, mas confiante em seu número ele bradou:
- Ou ocês passa o ouro ou eu passo a faca nocês e pego ouro mesmo assim!
- Pela minha espada! Não tem jeito mesmo! – bufou Launwaine. – Que os Deuses guardem suas almas!
O Cavaleiro da Coroa ergueu seu escudo e nem pensou em pegar sua espada. Realmente não queria machucá-los, queria dar-lhes outra chance, assim usara o escudo como arma. Ao contrário do heraldo que desembainhou o sabre e ficou de costas para seu amigo. Uma típica tática contra vários oponentes, pois assim não seriam pegos pelas costas por aquelas criaturas covardes.
Um goblin se antecipou e pulou em direção ao nobre que recebeu sua investida com um golpe de escudo que atingiu o monstro no ar e o fez cair pesadamente sobre o outro. A pancada acabou desmaiando as duas criaturinhas. Foi eficiente, mesmo não sabendo usar o escudo como arma. Os cincos restantes, do lado do cavaleiro, se assustaram, mas a moral deles foi readquirida pelo grito de guerra do líder amarelo.
Não foi muito diferente do lado do escudeiro. Três dos goblins avançaram. Um deles se atrapalhou e errou o golpe, o outro tentou atingir a perna do seu oponente, mas este, de forma habilidosa, retirou sua perna e se colocou em base para receber o golpe da próxima criatura, que investia em estocada. Seu golpe foi aparado pelo sabre de Valdor que contra-atacou decepando rapidamente a cabeça de seu atacante.
Veloz, Sir Hector acertou outro inimigo em um vigoroso golpe de escudo, de baixo para cima, arremessando outro goblin longe. Aproveitando a força do movimento, ele desceu o escudo, como uma onda que se quebra no mar, sobre outro pobre monstrinho, que foi ao chão esmagado.
Os dois goblins que erraram seus golpes tentaram atacar juntos, mas o heraldo se esquivou de um e aparou o outro ao mesmo tempo. Mesmo assim teve tempo para acertar mortalmente um dos desavisados oponentes que mal tinha se aproximado. Fez isso e voltou para sua posição defensiva, esperando o próximo movimento, como fora treinado a fazer.
Diferente, Launwaine sabia que seu amigo podia estar com problemas e antecipou-se agarrando o líder bandoleiro pelo pescoço, levantando-o do chão. O goblin amarelo tentou esfaquear o braço do cavaleiro, mas sua armadura era resistente demais e o protegeu totalmente. Persistente no movimento o apertão fez a criatura perder os sentidos.
Novamente em um ataque combinado, os ladrõezinhos dessa vez acertaram o escudeiro. Um acertou a barriga dele, mas foi o golpe na cabeça que fez Valdor desmaiar. O nobre o viu cair no chão e rápido defendeu seu amigo do ataque de misericórdia da pequena criatura golpeando com o corpo que ainda segurava. Os quatros oponentes que ainda restavam viram o goblin amarelo caído.
- Fujam vermes, ou terão a mesma sina!
O Cavaleiro da Coroa não gostou de ameaçar seus inimigos dessa maneira, mas precisava cuidar rápido de seu companheiro, assim se conformou e ficou feliz da tática ter funcionado. Uma vez seu líder ter caído, os goblins perderam sua frágil moral e fugiram de volta para suas cavernas.
Preocupado, Sir Hector debruçou-se sobre o colega e tentou cuidar de seu ferimento o melhor possível. Usou de seus escassos conhecimentos de cura estancando o sangue e fechando o ferimento. Esperava sinceramente que isso ajudasse, ao menos, até chegar a Relgoth, por isso, tão logo colocou o heraldo no cavalo, ele partiu.
- Você ficará bem meu amigo!
O nobre falou isso mais para consolar a si próprio que por outro motivo. Sabia que ferimentos como aqueles não permitiriam que seu companheiro sobrevivesse à viagem, mas a esperança era o último sentimento que abandonava um Cavaleiro de Solamnia.
Desolado pelo ocorrido, ele quase não percebeu que alguém se aproximava, como que vindo de um caminho contrário.
A estranha figura parou bem em frente ao cavalo. Era um homem de mantos vermelhos, um capuz escondia seu rosto. Possuía um cajado platino com uma esfera na ponta presa por uma garra de grifo. Podia se ver vários sacos e asas de inúmeros pássaros presos ao seu cinto. Ele exalava um aroma forte, mas relaxante, de ervas que o solâmnico desconhecia.
- Dê-me passagem, um amigo está ferido!
- Claro, entre outras coisas, é por Valdor que o rio do tempo me trouxe aqui!
- Como sabe o nome dele?
- Ora, o que seria, se não o conhecimento, a espada de um mago!
- Quem é você?
O cavaleiro se aproximou com cautela, desmontando do cavalo ele tentou ver o rosto do estranho, que logo retirou seu capuz e deixou-se mostrar. A figura era tão estranha que até o animal se assustou. O próprio Sir Hector recuou. Se fosse um guerreiro comum ele pegaria sua espada, mas isso não condizia com a Medida, de forma que ele não tinha esse reflexo.
O homem de vermelho não tinha barba e possuía cabelos brancos devido ao tempo. Mas o que assustava eram seus olhos. Ele não os tinha e possuía horríveis cicatrizes no lugar, como se tivessem sido dilacerados. Logo Launwaine se apiedou do velho e se aproximou dizendo:
- Você está bem, senhor?
- Mesmo em uma situação tão adversa, coloca primeiro a tua compaixão! – exclamou o misterioso homem – Posso afirmar apenas que estou longe de estar desamparado, meu senhor. O honrado escudo, sem dúvida!
- Como disse?
- Sinto que não poderei responder esta pergunta a ti satisfatoriamente, mas ao menos permita que eu tente com a primeira. Meu nome é Handar e sou um arquimago da Ordem dos Mantos Vermelhos. Assim, meu caro cavaleiro, a Lua Púrpura não está no céu levianamente!
- Eu...
- Calma, deixe que eu auxilie a espada!
Dito isso o mago tirou de uma de suas bolsas um frasco. Havia algum líquido mal cheiroso e verde dentro. Ele entregou ao confuso cavaleiro e disse:
- Esta é uma erva curativa, cujo nome já está insolúvel em minhas lembranças, mas Hégion nunca falhou comigo, posso lhe garantir.
Sir Hector pegou o frasco. Nunca um nobre, principalmente naquela situação estranha, daria o frasco ao companheiro, sem saber sua procedência. Entretanto ele não via mentira nas palavras de Handar, se é que era mesmo esse o nome dele. Algo no mago gerava uma aura de confiança. Assim, com o amigo próximo ao portal das almas, o cavaleiro deu-lhe de beber.
O gosto era horrível e Valdor se levantou reclamando. Não havia mais ferimento algum. Sem entender o que houve, ele recebeu o abraço do amigo que estava feliz por vê-lo bem!
- Pelas graças da Fênix Azul! – falou o Cavaleiro da Coroa. – Funcionou realmente! Não sei como agradecer, meu nobre mago!
- Não será preciso, salvei mais vidas hoje que podes perceber!
- Opa, quem é esse? – perguntou o escudeiro.
As devidas apresentações e explicações foram feitas e todos os três juntos partiram para a cidade.



Seis dias inteiros se passaram para que eles finalmente saíssem da estrada dentro das cordilheiras. Os três, mesmo o estranho arcano, pareciam companheiros de muito tempo, mostrando o quanto fora difícil e cansativa aquela viagem até ali. O tempo que passaram criou um elo entre os aventureiros, embora a fadiga tenha os atingido totalmente.
No entanto, esse sentimento logo se esvaiu com a visão da Planície de Solamnia. Era uma terra lindamente cortada pelos afluentes do Rio Vingaard. Estavam de frente para o leste e assim podiam apreciar o amanhecer do sol por detrás da Cordilheira de Dargaard, que mesmo em sua escuridão, cedia a feixes do mais puro brilho, tornando a paisagem, em uma luta de luz e trevas, estonteantemente bela.
Podiam ver alguns castelos ao longe, mas nada tão majestoso como o Forte Vingaard. Mesmo em ruínas a grandeza da antiga capital de Solamnia ainda impressionava. Atravessado pelo Rio Vingaard o Forte fora outrora o mais importante entreposto de comércio naquelas terras. Agora não passava de morada para mendigos e piratas. Isso deveria mudar, pensou Sir Hector, nem que ele tivesse que entregar a vida para isso!
- Cuidado com seus desejos Milorde! – falou Handar. – Eles podem se realizar.
- Seria uma bela morte, meu caro! – respondeu o cavaleiro sem perceber que o mago tinha ouvido seus pensamentos. – Uma bela morte!
- Bela morte sem dúvida! Como merece um Cavaleiro de Solamnia!
A tristeza atingiu o homem de vermelho e os outros tentaram entender o porquê. Imaginaram que talvez aquele velho tivesse lutado na Guerra da Lança, e sem dúvida, ele parecia ter lutado em algum árduo conflito. Podia se ver isso em sua forma e expressões julgou Launwaine, como anos antes ele vira em seu mestre, Lorde Gunthar. As sombras do passado abandonaram o arcano quando o cavaleiro disse:
- Não dá para ver minha cidade ainda, mas seguindo por ali logo estaremos...
- Essa é a estrada de Valdor apenas, Milorde – pronunciou o mago. – Ao menos por enquanto, teu destino e o meu agora estão em Vingaard!
- Como? Não entendo...
- Quero te revelar algo que só pode ser visto lá! E devemos ir logo, tem que ser durante a Noite do Olho, e isso ocorrerá em dois dias ou três!
- Mas, a estrada para lá não nos levará em menos de uma semana!
- A Ventania nos carregará. Vamos! Diga ao seu escudeiro para ir a Relgoth e preparar sua volta, não chegará muito depois dele!
- Isso é impossível – protestou o Heraldo. – Não tem como chegar a tempo!
- Deixe isso comigo, sou um arquimago no final das contas, não?
- Se sente bem para ir sozinho, Valdor? São três dias ainda de viagem, mas não vejo problemas a partir daqui!
- Claro que posso ir, mas o que me assusta é sua confiança nesse mágico! Nem sabemos quem ele é realmente!
- Fique calmo! Seu amigo cavaleiro estará de volta no quarto Bakukal!
- É o que espero, ou juro pelo Som da Vida que o encontrarei de novo!
- Não vamos mais nos encontrar nessa vida, discípulo de Branchala!
Sir Hector deu seu cavalo para o amigo, que contrariado partiu. Os dois ficaram ali por um bom tempo, até que não se pudesse ver mais o escudeiro ao longe. Handar colocou uma das mãos na cabeça, parecendo se concentrar em algo, e logo depois relaxou.
- Então – começou o cavaleiro. – Ventania que nos levará?
- Sim Milorde! Seremos conduzidos pela filha do Céu!
Com essas palavras o arquimago vermelho guiou os olhos azuis do nobre para o horizonte. Não demorou muito para que ele pudesse ver uma enorme criatura alada sobrevoando as planícies. Um medo irracional ameaçou tomar conta de Launwaine, mas foi confortado pelo velho.
- Não tenha medo senhor de Relgoth! Ela é a prova que o bem redime os seus e de qualquer forma não estará conosco em Vingaard. Lá serão apenas eu e você, meu Lorde. O Cavaleiro e o Mago!

sábado, 8 de maio de 2010

Capítulo I - O Antigo é Libertado

A chuva castigava ruidosamente sobre as planícies de Solamnia. Como vocês bem sabem, era assim no quarto mês do ano, dedicado a Deusa da Natureza Chislev. No entanto, eles nada percebiam. Montados em uma enorme Dragoa Azul, que além deles também levava uma estranha jaula coberta, os dois homens voavam por cima da chuva, rasgando nuvens carregadas.
Um deles usava uma resistente armadura de escamas de dragão azul, símbolo dos Senhores dos Dragões. Tinha uma capa azul escura por fora, mas vermelha por dentro. Uma espada longa estava presa a sua cintura, uma arma perversa que contarei sua história depois. Além disso, trazia consigo uma cruel lança de montaria grande o suficiente para ser usada em combate aéreo com um dragão, mas longe da eficácia das Lanças do Dragão.
O outro usava mantos negros e capuz que cobriam seu rosto. Havia várias inscrições mágicas em seu manto, mas só podiam ser vistas por alguém capaz de ver emanações mágicas, um dom raro aos não magos. Como arma portava apenas um cajado com o crânio de alguma desconhecida criatura na ponta. Algumas penas e assas de morcego estavam presas ao cajado. Suas unhas das mãos eram grandes como as de um animal e o fazia segurar de forma desajeitada sua única arma visível.
Partindo do território de Lemish, eles desceram um pouco para terem uma visão geral daquela região. Sobrevoaram o Condado de Gaard atravessando o Rio Vigilante. Ainda não podiam ver seu objetivo, pois naquelas terras que acabavam de entrar sempre era noite, assim era chamada de Noturna, o outrora Condado dos Cavaleiros, hoje uma terra maldita dominada pelo mais terrível Cavaleiro da Morte, o Lorde Loren Soth.
Como era sempre noite a vegetação de Noturna era muito diferente do resto de Solamnia. Não havia grama, só pó em um grande campo sem vida. Onde havia apenas uma cadeia de montanhas ao leste, as negras Cordilheiras de Dargaard e suas poucas árvores ao norte, que eram secas e assustadoras. Abutres e corvos voavam naquelas terras, vagueando como as hienas, e talvez coisas piores, no descampado. Quase não havia fontes de luz naquele local amaldiçoado, onde até o ar parecia venenoso e até a chuva era de ácida.
Tão logo chegaram, os estranhos e a dragoa foram recepcionados, ainda nos céus escuros, por uma comitiva, um séquito de treze Guerreiros Esqueletos montados em hediondos Pesadelos Voadores, cavalos negros de ventas e cascos de fogo, capazes de caminhar pelos ares.
Como formavam guarda pessoal do Cavaleiro da Morte, essas criaturas eram armadas como cavaleiros e de fato eram treinadas como tal, pois caíram junto com seu senhor há séculos atrás. Fiéis vassalos de Lorde Soth que o seguiram após sua morte.
Vinham em uma formação de cavalaria conhecida por “ponta de flecha”, no qual consistia em ficarem enfileirados, lado a lado, mas com o meio mais à frente que as pontas, como os pássaros em migração.
Já próximos dos invasores, os guardiões mórbidos de Noturna libertaram suas enferrujadas espadas da bainha e um deles, na dianteira pronunciou:
- Há vós que aqui entrais, deixai para trás toda a esperança!
- Esperem! – disse um dos homens – Eu sou Marhaus, Senhor dos Dragões da Armada Azul, sob o comando de sua suserana; a Alto Lorde Kitiara uth Matar, a Dama Azul e Comandante Suprema de todas as Armadas Dracônicas.
- Somos nós vassalos de algum senhor senão Lorde de Dargaard? – responderam com ironia um dos esqueletos – Estai devir nosso verdadeiro suserano e trará consigo toda sua danação.
- Não! – respondeu Marhaus com alarme – Pela Rainha das Trevas não será preciso! Nós apenas vamos à Última Torre, está em teu território, mas seu senhor não a toma como dele!
- É meu tudo o que há nesta terra, labrego! – Uma voz cavernosa ecoou no ar – Descereis agora!
Olharam para baixo e puderam ver um grande cavaleiro montado no campo deserto, deduzindo que poderia ser o próprio Lorde do Forte Dargaard, eles acharam melhor obedecer. Tão rápido o fizeram e suas suspeitas foram saciadas assim que se aproximaram do chão. Não havia dúvida, era realmente o Lorde Soth.
Era um enorme cavaleiro em uma montaria semelhante a dos seus súditos, mas esta muito maior e de chamas azuis. Tinha uma armadura de tom cinza e muito bem trabalhada cobria o corpo do animal. O homem hediondo portava uma decadente e enegrecida armadura de Solamnia, da ordem dos Cavaleiros das Rosas. Um elmo cobria todo o rosto dele, deixando apenas uma viseira onde só se podia ver duas luzes fúnebres ao invés de olhos. Tinha uma capa suja e desgastada pelo tempo. Possuía como arma apenas uma espada de lamina cruel, em uma das mãos, pois na outra estava uma tocha feita de ossos negros e assustadores que queimavam em um fogo sobrenatural. Uma aura nefanda o cercava que mostrava a Marhaus todo o perigo que aquele horror ancestral representava.
Aquele era um Cavaleiro da Morte, uma das piores criaturas que existiam em toda Ansalon. Eram antigos Cavaleiros de Solamnia que, por cometerem um crime tão terrível, foram amaldiçoados pelos Deuses a vagarem pela eternidade perseguidos pelos seus pecados.
Marhaus desmontou da dragoa e se aproximou com muita cautela, pois sabia que aquele era o mais poderoso de todos os Cavaleiros da Morte e nem sua montaria azul podia fazer frente diante daquela criatura lendária. Com toda a mensura e cerimônia da cavalaria solâmnica que conhecia, o Senhor dos Dragões começou a falar:
- Mil perdões se entrei assim em seus domínios Cavaleiro da Rosa Negra, se o fiz foi porque acreditava que minha Senhora já havia lhe relatado que estaríamos aqui, que não perturbaríamos teu descanso.
- Entrais em minha terra desta forma porquê é, não outra coisa, senão um obtuso.
- Concordo com isso meu lorde. – dizendo isso Marhaus se ajoelhou, mais por medo do que por respeito.
- Sabes que minha espada está banhada em sangue dos mais valorosos cavaleiros que Solamnia já treinou?
- Sim meu lorde. Eu imagino!
- No entanto sempre sou levado a crer que ela, a espada, nunca está completamente satisfeita!
- Por favor, lembre que o senhor tinha um acordo com a Dama Azul.
- Lembro muito bem do acordo! Lembrai a ti que, o que ela me prometera ainda não cumpriu!
Os olhos de Lorde Soth brilharam mais intensamente, como se fosse cometido de uma fúria avassaladora. Devem saber que durante a Guerra da Lança, Kitiara, a Dama Azul, prometera entregar a princesa elfa Laurana para o Cavaleiro da Morte em troca de sua ajuda na guerra, mas ela não cumpriu o acordo. Marhaus sabia disso e, tremendo, entregou um papiro que trazia consigo e, sem encarar a terrível criatura, disse:
- Como símbolo de minha boa vontade trago a ti uma carta de minha Soberana. Ela me pediu para entrega-lo pessoalmente.
O cavaleiro nefando leu a carta na frente dos intrusos e terminando voltou-se novamente para eles dizendo:
- Estais liberados para entrar apenas na Última Torre e que não demores em teu objetivo, pois se me oportunas novamente eu suprimir a sequidão de minha espada com o sangue de um Senhor dos Dragões.
- Compreendo, não demoraremos muito! Tem minha palavra!
- Que não me serves de nada, não? Sir Marhaus!
Pela primeira vez o Senhor dos Dragões olhou diretamente para o cavaleiro maligno. Imaginou como aquela criatura podia saber que ele um dia já foi aspirante a Cavaleiro de Solamnia. Que outrora ele sonhava no dia que seria conhecido como Sir Marhaus e teria seu próprio castelo, que não viveria mais a sombra de seu irmão. Mas o destino havia guardado um caminho muito diferente daquele.
O grande líder da Armada Dracônica Azul se sentiu humilhado, sentiu uma vontade imensa de se bater com Lorde Soth, de desafia-lo, um desejo que só não era maior que o próprio medo que aquele monstro gerava. Entenda que Marhaus de forma alguma era medroso, mas como todos sabem, um Cavaleiro da Morte era um oponente perigoso demais, poderoso demais. Assim ele se levantou, montou novamente a dragoa e em silêncio se pôs a voltar ao seu objetivo original, a Última Torre.



Não foi árduo ou demorado encontrar a Torre. Ela ficava ao sul das montanhas de Dargaard e muito próxima a nascente do Rio Vigilante. Era uma torre negra não muito alta, muito semelhante aos antigos sarcófagos do tempo dos Reis-sacerdotes de Istar. E, de fato, era...
O silêncio é finalmente quebrado pela Dragoa Azul:
- Devo ficar aqui?
- Sim, Tempestade do Deserto! – respondeu Marhaus para a dragoa – Ficará aqui e guardará a jaula que trouxemos, mas você Velthorm virá comigo!
Era comum que os dragões tivessem nomes assim, como Tempestade, Ventania ou Crepúsculo. Essas majestosas criaturas costumavam guardar em segredo seu idioma e seu nome verdadeiro, mas na verdade sua língua era tão estranha que ninguém, senão apenas os seres dracônicos, podiam pronunciar. As outras raças, quando extremamente inteligentes, só podiam entender, mas nunca falar.
O outro companheiro, Velthorm, era um mago, mas não um mago qualquer. Era um Arquimago de Mantos Negros, um dos membros do secreto conclave de Magos de Alta Magia onde estavam reunidos os vinte e um dos maiores magos de Ansalon. Tanto os malignos Magos Mantos Negros, como ele, mas também os benignos Magos Mantos Brancos e os neutros Magos Mantos Vermelhos. Havia também três líderes do conclave, que eram escolhidos um por ordem, de acordo com suas tradições.
Velthorm concordando com Marhaus desmontou e olhou para o céu. Mesmo com a chuva ele podia ver as luas no céu. Podia ver facilmente a argêntea Solinari e a púrpura Lunitari, mas apenas ele, como todo Mago Negro, podia ver a obscura Nuitari. Essas luas eram a manifestação dos Deuses da magia e assim sendo elas influenciavam o poder dos magos.
Todas as luas estavam no céu, mas todas alinhadas da forma que uma eclipsava a outra. Esse raro evento era conhecido como Noite do Olho e aquilo só poderia ser um bom presságio, pensou Velthorm. Então o arcano levantou suas mãos, e gesticulando estranhamente no ar e disse:
- Shirak!
E uma luz se formou na ponta de seu cajado, dentro do crânio, fornecendo uma melhor visão da Última Torre, que para surpresa deles, os portões de entrada estavam tão podres que há muito caíram na escadaria principal. Um ar frio saia da escuridão de interior, algo que os deu calafrios. Tão logo a sensação ruim passou, tanto o comandante e quanto o arquimago, entraram no sarcófago.
Esse era uma torre mais antiga que aqueles homens, tinham estado em toda as suas vidas. Muitos teriam medo de entrar naquele local profano, mas a derrota que os exércitos, agora sob seus comandos, durante a Guerra da Lança fez com que eles tomassem medidas drásticas. Se Kitiara, a Dama Azul, foi privada de trazer Takhisis, a Rainha das Trevas, para Ansalon então eles trariam algo que a ajudaria a se vingar dos Cavaleiros de Solamnia.
Determinados o Arquimago e o Senhor dos Dragões adentraram pelo interior putrefato daquela sombria fortaleza. Guiados pelo livro que Harkiel, a Dragoa Vermelha, lhes dera e, além de conter a planta de vários mausoléus de Istar, como a Última Torre, contava a lenda da criatura nefasta que abita essa fortaleza.
As antigas lendas da Era dos Sonhos falavam de antigos seres que governavam os primeiros povos como deuses. Entretanto não eram deuses e agiam com crueldade aos seus súditos.
Depois de muito tempo grandes heróis, durante o Manifesto da Fé da perdida Istar, foram guiados pelos verdadeiros Deuses e se voltaram contra seus opressores e os baniram do mundo. Depois do Cataclismo, que viria anos depois, quase não sobrou vestígios dessa história.
A Última Torre possui esse nome justamente por isso, pois é o único desses sarcófagos que ainda se tem notícia. Todos os outros se perderam e nem ao menos podemos saber quantos eram. Já que o livro que eles portam não está completo, tem vários mausoléus, mas em detalhes apenas este.
Também estava no livro que esses antigos governantes eram tão poderosos que não podiam simplesmente ser banidos, mas somente presos. Assim os heróis criaram esses sarcófagos, que também é uma prisão aos antigos.
Fracos com todo o combate que ocorreu, os perversos governantes foram presos, mas mesmo assim não derrotados por completo. Eles descansam e esperam poder juntar forças para novamente ameaçar o mundo. Apenas esperando a oportunidade certa, algo que esses malignos visitantes iriam proporcionar.
Não foi difícil entrar nos corredores do interior Torre, ela podia ser bem guardada para a maioria das pessoas, mas seus perigos não eram nada para eles. Afinal, eles também tinham um mapa no livro e sabendo assim, exatamente por onde deveriam caminhar. Assim não demoraram muito para chegar à câmara principal.
Um salão escuro que exalava um ar fétido transmitindo as eras que esse lugar não era habitado por nenhum povo. Havia um túmulo em seu centro, era onde estava o Antigo. Tinha várias obras de arte cobrindo suas paredes, mas o conteúdo das pinturas, já não dava mais para serem vistas. Um grande candelabro de espelhos estava no teto, onde, devido há várias pequenas aberturas nas paredes, devia iluminar toda a câmara com a luz do sol. No entanto, a maldição de Lorde Soth não permitia que os raios do sol tocassem novamente o Condado de Noturna.
O que mais havia ali eram ratos, baratas e todo o tipo de criaturas peçonhentas. Não tinha como andar pelo local sem prestar atenção no chão para não acabar pisando em um dos pequenos animais, mas mesmo assim era inevitável que isso ocorresse uma vez ou outra. Era como se o que havia de mais medonho fosse atraído para aquele lugar.
- Tem certeza que você quer incomodar algo tão antigo que o próprio tempo fez questão de esquecer Meu Senhor? – disse Velthorm, que embora tenha sido a demanda dele, vacilou ao ver o horror do lugar.
- Não me diga que um Arquimago de Alta Magia está com medo!
- Não, claro que não. Estou dizendo apenas que conhecemos quase nada do que vamos libertar! Seria mais prudente...
- Que agora que chegamos quero que prepare o ritual e traga as crianças aqui! – interrompeu Marhaus – Esse foi o único motivo pelo qual permiti que você me acompanhasse, sua única serventia!
Com uma mensura o arcano saiu em busca das crianças que tinha deixado fora da torre para só agora, com todas as armadilhas e perigos destruídos, as traria para o sacrifício, como pedia o livro. Eram elas que estavam na estranha jaula que carregavam, presas, compradas como simples escravas de escravocratas do Chifre Quebrado.
Uma vez que ele trouxe as crianças, Velthorm iniciou o ritual de convocação, como estava descrito no livro. Prendeu as crianças em volta do túmulo que estava no meio do salão. Usou o sangue de animais que havia trazido consigo em uma garrafa e desenhou símbolos antigos e profanos no chão. Pronunciava, enquanto fazia o ritual, de um idioma que há muito tempo o mundo não ouvia, e assim o próprio ar ficava mais pesado.
Enquanto as crianças imploravam por socorro ou misericórdia, sem saber o que estava acontecendo, o Mago de Mantos Negros retirou dois pequenos objetos de seu manto. Cada uma delas parecia uma espécie de presilha ou algo assim. Eram feitas de prata e possuíam inscrições no idioma usado pelos clérigos da Ordem das Estrelas. Entregou um para Marhaus e disse:
- Use isto em seu nariz, o cheiro vai ficar insuportável!
- Certo! – respondeu o Senhor dos Dragões colocando o artefato.
- Isso! Agora vá ao túmulo e o abra.
Hesitante, o comandante fez o que o arcano pediu. Entretanto a tarefa era mais difícil que parecia. O tampão que guardava o Antigo era muito pesado. Ele respirou fundo, tentou esquecer dos berros dos garotos que o incomodava e com muito custo removeu o tampão liberando um fedor horrendo que emanou do túmulo que quase derrubou os dois, mesmo protegidos. As crianças caíram estonteadas pelo odor pútrido.
O grande líder da Armada Dracônica Azul deu vários passos para trás e caiu sentado, mas ainda acordado, sua visão estava turvada e vertiginosa. O Arquimago continuou com o ritual, retirando uma adaga, e sacrificando uma a uma as crianças. Mas não antes de abusar delas das formas mais sórdidas e cruéis, torturando-as sem misericórdia. Depois de mata-las ele pintou o próprio corpo com o sangue delas e se alimentou de seu sangue.
Mesmo Marhaus não agüentou ver aquilo! Vomitou e saiu do salão desejando nunca ter encontrado aquele local. Não havia honra na forma que aquelas inocentes crianças tinham morrido, mas lembrou que era preciso. Tinha que mostrar seu valor para a Dama Azul. Queria mostrar aos Cavaleiros de Solamnia que erraram ao não aceita-lo como um dos seus, ao preferir seu irmão. Tinha que mostrar para ele mesmo que era um homem digno.
Assim ele se levantou e não demorou muito para se recuperar. Virou-se para a porta do salão e entrou. Viu que os corpos sem vida das crianças serem devorados pelos vermes. À medida que eles acabavam seu horrível banquete, as criaturas entravam no túmulo.
Velthorm estava no meio do salão, próximo a lápide e em transe, julgou o Senhor dos Dragões. Ele ainda pronunciava aquelas estranhas palavras, que não ouso traduzir...

“Ashran, ashran pelith Astaroth polhaeim!
Mastrhas erh suphadua qeshua tharty
Posthus pahum sesr vhaur orthovai
Ashran, ashran masfudhir Krynn!
Bos sostos erh xuvhus phollaroin”

Uma luz negra, como se fosse possível uma luz ser negra, saiu do túmulo e aos poucos o Antigo se levantou. Inicialmente envolto pelos vermes que logo se uniram a aquela criatura e que, não era nada além, de um ser magro e fraco, quase patético, enfaixado como as antigas múmias de Istar. Mas tão logo a criatura abriu os olhos e um som, baixo, mas que se propagou por toda Ansalon, o fez finalmente ter a mínima noção do que fizera.
Entenda que não havia bondade nenhuma naquela criatura, todos somos formados de bem e mal, todos menos aquilo, tinha apenas um mal supremo dentro dele. O Antigo provavelmente teria os matado apenas por prazer, mas há muito não habitava Krynn. Sabia disso e precisava deles para conhecer essa época, esse “novo” mundo onde acabara de acordar. Só por isso ele deixaria que aqueles ignorantes vivessem, ao menos por enquanto.
A visão do demônio quase esmigalhou a sanidade de Marhaus que olhando para aquela medonha criatura, colocou suas mãos a própria cabeça e disse:
- O que foi que fizemos!



O forte vento abriu uma das janelas da Alvorada, trazendo um pouco de nevasca para dentro. Todos pararam para olhar o grande Thom fecha-la novamente. O Arauto fez uma pausa, pois sabia que a história era forte demais e seus ouvintes precisavam respirar um pouco. Ele jogou mais fumo em seu cachimbo, acendeu, olhou os rostos ainda abalados de todos e voltou a falar:
- Iniciei minha essa história dessa forma para que percebessem a gravidade da situação. Velthorm estava certo, eles não deveriam ter incomodado aquilo.
- O ritual foi à coisa mais abominável que eu já ouvi! – disse o taverneiro.
- Exatamente! – respondeu o Velho – A criatura só podia ser despertada com dor e sofrimento de inocentes. Aquilo foi tão horrível que perseguiu a mente daqueles homens até que seus destinos se revelassem.
A lareira naquele momento podia aquecer seus corpos, mas não seus espíritos. O Contador de Estórias podia ver isso nos olhos daquele homem, podiam ver a esperança se esvaziar em alguns. Assim, com a taverna limpa da neve que entrou pela janela, o ele retomou seu relato:
- Vou contar-lhes que, mesmo quando um mal tão terrível assola o mundo, ainda há esperança. Sempre há esperança!
- O que pode enfrentar aquilo? – perguntou o grande Thom.
- Irei voltar mais um pouco no tempo, mas não muito! Contarei a história dos heróis que desafiaram o Antigo. Por quem devo começar?
O Arauto olhou para todos, mas especialmente para aquele estranho homem de mantos e cajado. Sorriu para ele e disse:
- Ah, sim! Começarei pelo escudo! Pelo Cavaleiro!

terça-feira, 4 de maio de 2010

Prólogo - Contador de Histórias

Há muito tempo atrás existia um mundo muito diferente do nosso, um mundo de magia e seres poderosos chamado Krynn. Nessas terras o continente principal, o mais habitado e onde se passará nossa estória, era conhecido pelo nome de Ansalon, um lugar marcado por grandes guerras, lendários sacrifícios e intervenções dos Deuses.
Três filosofias dividiam tudo nesse mundo. O Bem: que redimia a todos e protegia os oprimidos; O Mal: que queria a todos conquistar estabelecendo a paz pela força e A Neutralidade: que fazia o tênue, mas necessário, equilíbrio entre as forças do bem e do mal, mediano sua eterna guerra pelas almas dos mortais.
Várias raças habitavam o mundo. Há muito existiam os humanos: criados da lama, sempre sedentos pelo poder de conquistar o mundo; os elfos: criados das árvores, amantes das artes e das florestas e os ogros: criados das pedras, uma raça outrora poderosa, hoje decadente.
Mas nenhuma dessas raças era tão antiga e poderosa quanto os dragões, seres de poder avassalador e incomparável. Capazes de viver durantes eras, capazes de moldar o mundo a sua vontade.
Entretanto os homens não estavam desamparados diante desse horror, pois haviam os Deuses! Os seres mais poderosos de Ansalon, que atendiam as preces da humanidade e viam ao seu socorro, pelo bem ou pelo mal.
A magia era comum e muitos homens desafiavam seus ancestrais segredos. Clérigos em sua fé aos deuses e sua vontade de mudar o mundo. Magos em seus estudos de textos antigos e obscuros. Mistérios que muitas vezes não deveriam ser descobertos.
Aqui os contos se tornam épicos e os heróis se tornam lendas.


A história de Ansalon se dividia em cinco eras:
A Era do Nascimento: Uma idade conhecida apenas pelas escrituras religiosas, lendas populares e pelos poemas do Pergaminho Vital da Canção, de autoria do grande bardo Quevalin Soth. A chegada dos Deuses e o alvorecer de mundo, aonde Krynn foi forjada e as raças mortais foram criadas.
A Era dos Sonhos: Uma época de mitos e lendas, onde poderosas nações, que existiriam por milênios, são estabelecidas. Grandes heróis combateram terríveis males e o povo aprendeu lições que se revelariam importantes posteriormente.
A Era do Poder: As forças do Bem dominam nesse período, onde a civilização atingiu seu ápice e as raças malignas foram subjugadas ou expulsas. Nesta era, as raças mortais demonstram uma trágica ignorância que finalmente acarretou a destruição de sua cidade de ouro. No final desta era o mundo foi alterado para sempre pelo Grande Cataclismo.
A Era do Desespero: Pragas, fome e guerra marcam esta era. A paz só podia ser conquistada a um preço terrível. Entretanto também foi uma época de redescobertas, em que o povo de uma terra destroçada recuperou seu passado e restabeleceu seu relacionamento com as divindades.
A Era dos Mortais: Poderosos dragões de poder incomensurável conquistam o mundo. Onde embora o mundo tenha aprendido a viver sem o auxilio dos Deuses, um Deus surge das cinzas da guerra para a todos unir em uma só vontade.


Durante toda sua história heróis sempre se levantaram contra a injustiça do mundo. Homens e mulheres que não aceitavam as ironias e tristezas da vida e lutaram, munidos apenas de amor e coragem, mudando assim, o destino do mundo.
Essa é uma saga de grandes heróis que mesmo quando o mal parece ser inexorável, quando toda a esperança se perde e quanto tudo e todos estão contra esses bravos, eles ainda realizam grandes feitos e trazem a paz novamente ao mundo...

Nossa estória começa em uma taverna chamada Alvorada no distrito das Montanhas Púrpuras na cidade de Palanthas, outrora capital de Solamnia. Esse distrito chamava-se assim por que as cordilheiras próximas refletiam a luz de Lunitari, a lua vermelha, dando um ar avermelhado de dia, embora de escuridão lúgubre à noite.
Mesmo com essa aparência sombria, o distrito era a morada de “mercadores de sucesso”, como dizem os palanthinos. Mercadores que transitavam entre a baixa nobreza que vivia nas Fazendas Douradas, o distrito acima e o bairro Mercantil que ficava ao lado de Montanhas Púrpuras.
A taberna sempre ficava lotada quando Arauto, o velho, contava suas histórias. Plebeus, anões e até alguns elfos, com seu gosto refinado, ficavam na Alvorada para ouvi-lo. Mas aquele dia trouxe vários visitantes ilustres, incluindo principalmente os membros da Ordem dos Estetas.
Estes eram bardos historiadores, sabiam que aquelas não eram simples “estórias”, simples contos inventados. Mas se tratavam de “história”, de fatos ocorridos em Krynn, de fatos ocorridos em todo o mundo. Antigos discípulos do grande historiador Astinus, que agora tinham de viajar por todo o continente de Ansalon para registrar os acontecimentos e copia-los no Iconochronos, ou traduzindo, o Rio do Tempo. Esses anais da História ficavam na Grande Biblioteca de Palanthas.
Antigamente essa tarefa era destinada ao próprio Astinus, um ser imortal que escrevia, de alguma forma misteriosa, a história de Ansalon à medida que o tempo passava, sem ter que ir a lugar algum. Como ele estava desaparecido, desde que os deuses abandonaram o mundo de Krynn, no final da Era do Desespero. A Ordem precisou crescer e espalhar seus discípulos para que os fatos continuassem a ser escritos, para que a História continuasse a ser estudada.
Assim o próprio Bertren, atual líder dos Estetas, estava anotando tudo que o Arauto contava para os curiosos que o ouviam na taverna. Como a todos, o Contador de Estórias intrigava o historiador, no entanto ele o respeitava, pois já havia comprovado que muitos dos fatos narrados pelo contador eram verdade, que ele realmente tinha “a memória do mundo em sua cabeça” como a todos dizia.
As crianças gritavam ao Velho...
- Arauto! Arauto! Conte aquela história do Vinnas Solamnus!
- Não – gritava outro garoto – Conte sobre a Guerra sob os Portões dos Anões!
- Conte sobre a Queda de Istar! –pediam alguns.
E assim, o homem contava suas histórias e divertia os clientes da taverna. Assim sendo o dono da Alvorada, o taverneiro Thomas, mas conhecido por todos como grande Thom, sempre o servia sem cobrar. Já que muitos vinham a aquela taberna somente por causa do Arauto. Muito do seu ganho era devido ao velho e nada mais justo que não cobrar sua estadia.
A noite caíra silenciosamente e todas as crianças foram para as suas casas. Era normal que as cidades e vilas em Solamnia que todos dormissem tão cedo, pois todos acordavam ao raiar do sol para trabalhar e ficavam assim até o entardecer. Era assim a vida nos feudos, no entanto Palanthas era diferente, como toda cidade que cresceu demais, como Solanthus ou Lemish, havia outro tipo de mentalidade. Pessoas que preferiam se entreter um pouco antes de descansar. Pessoas que gostavam de estórias.
Como o Cavaleiro de Solamnia, que acabara de entrar. Ele era um homem alto, loiro e de longo bigode. Um típico estereótipo desses cavaleiros. Usava uma antiga armadura feita de aço, um metal nobre naquele mundo. Possuía um elmo que educadamente tirou ao entrar na taverna. Também tinha uma espada de duas mãos muito bonita em sua cintura e uma capa vermelha forrada com pelos brancos de algum animal do sul.
Estava acompanhado de dois homens. Um vestido uma roupa de couro azul escuro, que escondia várias adagas. Como o seu companheiro também tinha uma espada, mas esta era longa e feita pelos elfos. Tinha uma capa preta com capuz que, ao contrário do outro, não foi educado para tira-lo, parecendo que queria se esconder de alguém.
O outro companheiro do solâmnico se vestia com mantos e tinha na cintura vários saquinhos e penas penduradas, o que lhe dava um peculiar cheiro e aspecto. Tinha um curioso cajado, feito de algum metal que apenas os melhores ferreiros anões poderiam identificar. Na ponta desse bastão havia esculpido uma garra de grifo segurando uma esfera de cristal. Ela estava brilhando quando ele entrou, mas se apagou logo que estavam no interior da taverna.
Era muito estranho que aquele homem, o Cavaleiro, estar ali. Já que a ordem rival aos solâmnicos, os Cavaleiros de Neraka ainda dominavam a cidade naqueles dias. Assim, o fato de simplesmente o deixassem entrar livremente na cidade era um mistério. E claro que um verdadeiro Cavaleiro de Solamnia nunca se esconderia em capas ou mantos, aquilo não era honrado, aquilo não estava previsto na Medida.
Com gestos típicos da etiqueta da cavalaria, o homem olhou com certa ternura para o Contador de Estórias e se aproximou dizendo:
- Meu velho se for de seu agrado gostaria que contasse uma história para nós!
- Sim! – respondeu o Arauto – Queres que eu conte uma desconhecida história que ocorreu durante a Guerra da Dama Azul, de onde tiraste esses enigmáticos versos que tens em mãos?
O Cavaleiro refletiu sobre aquilo. Como aquele homem sabia o porquê dele estar ali, naquela taberna, naquela noite. Ainda mais, sabia que ele portava um verso do diário de seu antigo lorde, tudo isso era estranho, mas o ele era um veterano de guerra, já tinha visto muitas coisas estranhas, já tinha lutado na companhia até mesmo de Deuses e quase nada podia surpreende-lo mais. Seus pensamentos foram interrompidos pela fala do Contador de Estórias:
- “O Mal rastejará novamente para as profundezas!” Não é um verso muito bonito, entretanto essa não era a intenção de quem escreveu.
- Eu sei disso, é uma profecia! Quem escreveu isso? – perguntou o solâmnico.
O Velho olhou para o homem de mantos e cajado e sorriu. Foi até uma mesa que estava perto da lareira que confortava os clientes naquela noite tão fria de inverno. A neve caia sobre toda a cidade soprada pelos ventos gelados da Baía de Branchala. A paisagem sempre ficava mais linda naquela estação e o brilho refletido das luzes de lampiões fazia jus ao nome carinhoso que todos chamavam a cidade. Palanthas a “Jóia do Norte”.
- Venha até aqui se esquentar Meu Lorde. – disse o Arauto para o cavaleiro. – E podes vir também, Bertren! Sei que gostarás desta história!
- Qual estória especificamente contará? –perguntou o historiador.
- Aquela em que um mal muito antigo foi despertado!
O Esteta tentou se lembrar, mas nunca tinha ouvido falar dessa história. Inicialmente ele pensou que o Velho falava sobre a tentativa de trazer a Deusa do Mal, Takhisis ao mundo, mas isso foi na Guerra da Lança, não na Guerra da Dama Azul e aquele homem obviamente não cometeria um erro simples como aquele, um erro banal. Teria que ser outra história.
O historiador ficou eufórico, pois sabia que ouviria algo novo, algo que não estava nos anais da Grande Biblioteca de Palanthas. Ele pediu mais um hidromel a atendente da Alvorada, uma linda garota chamada Emy, filha de Thom. Bertren molhou a pena em seu franco de tinta e ouviu atentamente o que dizia o Contador de Estórias aos estranhos, para escrever exatamente com as palavras do velho.
Ninguém mais tinha ficado na taverna, apenas o Arauto, Bertem, o cavaleiro e seus dois companheiros. Todos em uma única mesa. O grande Thom fechou a taverna e ficou no balcão, junto com a atendente, para também ouvir a história.
O contador pegou seu velho cachimbo, tão velho que ele nem lembrava mais como o tinha conseguido. Fumou um pouco, tragando a fumaça e olhando para os rostos daqueles homens, ávidos por suas histórias, soprou a fumaça e falou.
- Prestem muita a atenção! Vou contar uma história que ocorreu há alguns anos, no final da Era do Desespero, quando essa linda cidade ainda era a capital de Solamnia. Bom, a história começa assim...